Nas zonas pobres, vêem-se as casas entaipadas das pessoas que não conseguiram pagar a hipoteca. São uma ou duas por rua, como dentes cariados numa boca saudável, a parte visível de um mar de problemas.
Chicago. — Mesmo numa crise, há pessoas sentadas em cafés e casais passeando pelas ruas (a mulher grávida de sete meses) e velhinhas dando de comer aos gatos. Mesmo em recessão há dias bonitos e sol e toda a gente parece feliz. A história é que nos engana, com o tempo, e acabaremos por atribuir a cada época traços de personalidade bem definidos, como se fossem personagens num romance. As fotografias a preto e branco fazem o resto: para nós os anos trinta foram de filas para a sopa dos pobres. Mas nos anos trinta também havia festas e jazz e gente que namorava ou frequentava os restaurantes.
Saul Bellow, que ganhou o prémio Nobel da literatura em 1976 e é um dos meus escritores preferidos, estava aqui em Chicago durante a Grande Depressão. Nas suas recordações, lembra-se de jogar bilhar e ver combates de boxe. Lembra-se do dia em que a sua professora de matemática cantou por Roosevelt ter ganho as eleições, mas demorou tempo para perceber que ela estava sem receber salário. Era o tempo de Al Capone, mas o jovem Saul achava que os gangsters só se matavam uns aos outros. É a ideia de alguém que viveu a sua vida naquela época e cada dia tinha de ser vivido por sua vez. Uma recessão não é sentida como recessão o tempo todo.
No futuro talvez estes arranha-céus brilhantes venham a ser como as jóias das civilizações passadas. De momento, o que tenho para vos dar são excertos de excertos de coisas soltas. Nas zonas pobres, vêem-se as casas entaipadas das pessoas que não conseguiram pagar a hipoteca. São uma ou duas por rua, como dentes cariados numa boca saudável, a parte visível de um mar de problemas. Para além destas, há milhões de casas neste país que valem agora menos do que os empréstimos que foram pedidos para as comprar. Em certos estados, metade das casas está nesta situação, “debaixo d’água”, como aqui dizem. É uma questão de tempo até os seus proprietários entenderem que não vale a pena pagar a prestação, enfiarem a chave num envelope endereçado ao banco, e partirem para outra. Alguns, raivosos, até arrancam os canos das paredes. Outros, deprimidos, deixam ficar tudo: televisão, brinquedos dos filhos, fotos de família.
A dor infiltra-se pelos arranha-céus acima. Muitos funcionários de bancos são despedidos. Chegados a casa, descobrem com os esposos que a vida com dois salários era mais fácil. Está documentado: como efeito da crise, a taxa de divórcio aumenta nas classes altas. Os advogados especializados já sentiram uma oportunidade. A publicidade oferece os seus serviços: “se os maus tempos já excedem os bons, é tempo para pedir o divórcio — ligue-nos”. Quando os maus tempos excedem os bons, sentimos que entrámos em recessão.
Nos últimos dias, a minha vida tem sido perguntar às pessoas de Chicago como se sentem e como pensam que se vão sentir a partir de quarta-feira. Uma das minhas obrigações, por exemplo, é saber se os meus interlocutores têm medo de ficar desiludidos com Obama, caso ele ganhe as eleições. Com todo o respeito, acho que é uma pergunta idiota, mas fui instado por amigos (de esquerda e de direita) a informar-me sobre isto. Uma das respostas foi: “primeiro temos de o eleger, homem”. Esta gente está ocupada em fazer história e, mais ainda, preocupada em salvar o que for possível. Mais tarde terão tempo para ficar desiludidos.
[do Público]