|Do arquivo Público 24.01.2018| Um dos argumentos típicos contra a ida de Centeno para a presidência do Eurogrupo era mais ou menos assim: “então e quando ele tiver de lidar com o governo da Grécia? Vai ter de assumir o papel de Dijsselbloem e da troika? Agir como o polícia do austeritarismo alemão contra o Sul? Para tal triste função mais vale prescindir do lugar e passar a bola a um carrancudo ministro do Norte da Europa”.
Ontem Centeno presidiu à sua primeira reunião do Eurogrupo. E à saída, fez o seu primeiro anúncio sobre a Grécia: o de que vão ser abertas as negociações para um alívio da dívida pública grega. Seria portanto interessante ler algures uma análise com uma explicação para isto por parte de quem defendeu que o papel de Centeno seria o contrário disto: punir os gregos e não renegociar dívida grega.
Suspeito que se tal análise aparecer ela siga um de dois caminhos. Por um lado, assinalar que se Centeno anunciou a abertura de negociações para o alívio à dívida grega na sua primeira reunião é porque isso não se deve a Centeno, mas certamente a decisões que já vêm de antes da sua presidência e ficaram agora prontas a ser divulgadas em público: fruta madura, fácil de apanhar. Por outro lado, dizer que se não couber a Mário Centeno o papel de “polícia mau” do eurogrupo contra a Grécia é porque lhe caberá o papel de “polícia bom”.
Nenhum destes argumentos está completamente errado — o primeiro é provavelmente correto, o segundo é meramente pitoresco — mas nenhum é minimamente esclarecedor acerca do que se está a passar com o euro. Porquê? Porque nenhum lida com o aspecto mais importante por detrás do quadro mental de quem criticou a ida de Centeno para o eurogrupo, a saber: a ideia de que o euro é uma realidade imutável, igual em 2002, 2008, 2010 e 2018. Neste quadro de ideias, os problemas do euro não estão nos erros de construção da moeda da UE porque não são defeitos, são feitio mesmo. E sendo assim nada vai mudar, porque nada pode mudar.
Não tenho dúvidas de que há muito brilhantismo intelectual aplicado a defender esta visão. Mas não seria a primeira vez que bons intelectos ficariam presos no seu próprio brilhantismo. Conta-se que um dos mais geniais filósofos da Antiguidade Grega, Zenão de Eleia, conseguiu provar por A+B que era impossível haver movimento. Muitos filósofos do seu tempo tentaram refutá-lo sem o conseguir e acabaram por se converter à ideia de que tinha sido provado que não podia haver movimento. Até que um dia essa doutrina chegou aos ouvidos de um outro filósofo, provavelmente menos brilhante, conhecido por Diógenes o Cínico, que respondeu à tese de que não era possível haver movimento da maneira mais simples: levantou-se, atravessou a sala, voltou para trás e sentou-se. Nenhum outro argumento foi necessário.
Ora, a argumentação de que o euro não vai mudar porque ele foi construído para não mudar embate, da mesma forma, na realidade de todos os dias: é que, na verdade, o euro já mudou muito entre 2010 e hoje. Em 2010 era considerado impossível comprar dívida dos estados-membros; hoje o BCE fá-lo numa soma de 60 mil milhões de euros por mês. Em 2010 era considerado impossível o BCE enveredar por uma política expansionista; hoje as políticas do BCE resultam em juros negativos para a dívida portuguesa. Não faltam outros exemplos. Um observador atento notará que grande parte dessas mudanças coincidem com a saída de Jean-Claude Trichet e a chegada de Mario Draghi à presidência do BCE. Portanto, duas conclusões: as coisas já mudaram consideravelmente e os indivíduos à frente das instituições contam.
Da mesma forma, este historial sugere que as coisas possam voltar a mudar no futuro e que as ideias das pessoas à frente das instituições continuem a contar. Talvez menos ou mais devagar do que aquilo gostaríamos, é certo. Mas de forma mais substancial ou consequente do que alegam os defensores de que o euro é imutável e que nele já todos os papéis estão atribuídos à partida. As pessoas e as ideias ainda contam para qualquer coisa.
(Crónica publicada no jornal Público em 24 de janeiro de 2018)