|Do arquivo Público 19.01.2018| Anteontem subiu para falar ao pódio do Parlamento Europeu o primeiro-ministro da Irlanda, Leo Varadkar.
Varadkar é um dos dois chefes de governo na Europa com ascendência indiana (o outro é António Costa, de Portugal). É um de dois chefes de governo na Europa assumidamente homossexual (o outro é Xavier Bettel, do Luxemburgo). E discursou em inglês, francês, alemão e gaélico. Multiétnico, poliglota e homossexual, Leo Varadkar representa tudo aquilo que os nacional-populistas detestam. Pior ainda para eles é aquilo que um discurso como o de Leo Varadkar deixou claro: que o poder de um pequeno país como a Irlanda é extraordinariamente potenciado por pertencer a uma União Europeia de 500 milhões de cidadãos.
Vale a pena lembrá-lo hoje. Há um ano, quando Trump tomou posse, ouvimos um outro discurso, de um nacionalismo triunfante, agressivo, cheio de certezas. Para Trump, como para os nacional-populistas de todas as estirpes, os países não têm amigos; o mundo está compartimentado em jurisdições estanques cuja soberania nunca pode ser partilhada (porque partilhar é perder); a solidariedade internacional é, pois, por definição impossível. O futuro pertencia aos países fortes liderados por homens fortes: os Putin, Erdogan, etc. Organizações transnacionais como a União Europeia estariam inevitavelmente fadadas ao fracasso. O Brexit teria provado isso um ano antes, e em breve os países fariam fila para abandonar o projeto europeu. Duas vitórias eleitorais num ambiente de demagogia descontrolada teriam chegado para que os nacional-populistas e aqueles que por eles se deixaram impressionar nos falassem de cátedra.
Passado um ano, a pergunta que podemos fazer a Trump — como aos brexiteiros no Reino Unido — é a seguinte: porquê as trombas? Vocês ganharam. Porque não estão felizes?
No caso de Trump, não se trata só do facto de o grupo de ideólogos à sua volta ter acreditado que estava a surfar a onda do “sentido da História” e agora se ver sem história nem sentido. Ora, Trump não quer só ganhar; ele quer ser respeitado. O risco para o futuro é que, sentindo-se menosprezado, Trump decida expressar o seu ressentimento através de um ato de guerra: se fora do seu círculo ninguém o adora nem respeita, ao menos que tenham medo dele. O rancor é um móbil central na política trumpiana e não devemos nunca duvidar daquilo que o seu rancor é capaz de fazer.
No caso do Brexit, o discurso de Varadkar sugere outras pistas de interpretação. Quem vos parece estar mais ao controle da situação: o líder da pequena Irlanda ou os líderes, quem quer que eles sejam, do Reino Unido do Brexit? Ao falar no Parlamento Europeu Varadkar não precisou de o relembrar, mas toda a gente sabe que a Irlanda tem um veto pronto a usar nas negociações do Brexit, principalmente nas questões que têm a ver com a Irlanda do Norte — se olharmos para a história da Irlanda, rapidamente veremos que talvez nunca este país tenha tido como hoje capacidade para impor condições ao Reino Unido que antes o colonizou e oprimiu.
As conclusões a retirar são pois as contrárias daquelas que os nacional-populistas se habituaram a matraquear. Sim, a verdade é que os países também precisam de amigos; tal como se passa com as pessoas, os países-amigos fazem-se ao saber ouvir os outros, entender os seus problemas, colaborar para os resolver. Sim, a verdade é que partilhar soberania significa ganhar mais margem de manobra ao nível internacional, e portanto construir soberania agregada. Sim, a verdade é que a solidariedade internacional não é um mito, mas uma arte a ser aperfeiçoada — como a Irlanda tem exemplificado nos últimos tempos. Os países que negam estas verdades para satisfazer o cinismo dos seus políticos vêem-se muito rapidamente a falar sozinhos, a brandir ameaças, mais tolerados do que verdadeiramente apreciados.
Foi um ano de aprendizagem, este. A verdade é que ao fim dele os nacional-populistas, que tão ruidosamente ganharam, continuam de trombas como antes. Já aqueles que se revêem no internacionalismo talvez tenham, pelo contrário, algumas razões para sorrir.
(Crónica publicada no jornal Público em 19 de janeiro de 2018)