|Do arquivo Público 08.01.2018| O século americano começou há exatamente cem anos em 1918, neste dia 8 de janeiro, quando o presidente Woodrow Wilson discursou perante o Congresso dos EUA propondo um entendimento para a paz na Europa baseado em quatorze pontos.
Os Quatorze Pontos de Wilson, como ficaram conhecidos, foram uma coisa notável. Em quatorze parágrafos tão curtos que muitos caberiam hoje num tweet, pela primeira vez as condições de uma paz na Europa foram impostas de fora do continente por um poder que antes se julgava de segunda ordem. Talvez mais importante, Wilson propunha uma revolução na forma de entender a diplomacia e as relações entre potências. Os Quatorze Pontos fundaram as bases do sistema internacional e do mundo em que ainda vivemos. No mundo de Wilson, os tratados deveriam ser negociados publicamente; a navegação nos mares deveria ser irrestrita; à maneira liberal, o direito de comerciar não deveria ser tolhido; em aliança com o nacionalismo ascendente, o direito à auto-determinação deveria ser reconhecido. A Alemanha, julgando que estava a aceitar os pressupostos de um armistício, aceitou parar com a guerra. Os aliados europeus de Wilson, em Paris e Londres, aproveitaram para proclamar a derrota alemã, e depois impô-la no Tratado de Versalhes.
Os EUA não entraram no século XX pensando ser uma super-potência global. Queriam certamente ser uma potência hegemónica no seu continente, como mandava a Doutrina Monroe de 1823, e talvez alargar a interpretação desta doutrina. Em 1898 os EUA conquistaram as Filipinas aos espanhóis, mas nada lhes prenunciaria que vinte anos depois estariam a ditar aos europeus os termos da reorganização de Europa e do Médio Oriente. Os europeus fizeram isso por eles. Entrando em 1914 numa guerra sem ninguém perceber como, conseguindo fazer colapsar quatro impérios em quatro anos (Alemão, Austro-Húngaro, Russo e Otomano) e endividar os restantes, como o britânico. Aí como na IIª Guerra Mundial, os americanos vigiaram de longe a loucura europeia, entraram tarde em combate, emprestaram dinheiro e armas, participaram na glória da libertação e nas negociações de paz e terminaram dizendo como se deveriam fazer as coisas dali por diante (não que antes fossem melhores).
Depois disso tudo, tiveram dificuldades em seguir a sua própria receita. O pináculo dos Quatorze Pontos estava na criação de uma “associação geral de nações… com o propósito de dar garantias mútuas de independência política e integridade territorial aos estados tanto grandes como pequenos” — a Sociedade das Nações, antepassada da ONU.
A Sociedade das Nações ficou decidida nas negociações de Versalhes. Mas, chegado a casa, Wilson foi surpreendido pela política americana: o Senado não aceitava a entrada dos EUA na Sociedade das Nações. Em desespero, Wilson tentou anular os senadores pela retaguarda, iniciando uma digressão em comboio pelos estados americanos para convencer diretamente os eleitorados locais a apoiarem a sua iniciativa. Exausto, teve um colapso. Voltou a Washington, incapacitado e derrotado. O resto da sua presidência foi exercida na prática (e em segredo) pela sua mulher e por aliados políticos.
A imagem de um Woodrow Wilson (que tinha sido um brilhante académico e reitor de Princeton) mentalmente incapacitado em pleno mandato presidencial faz pensar que os EUA se aguentam em plena posse dos seus sentidos mesmo quando não se pode dizer o mesmo dos seus presidentes. Mas, cem anos depois, há qualquer coisa de muito diferente num Donald Trump que perde as estribeiras ao tentar silenciar um livro que lança dúvidas sobre as suas capacidades mentais. Agora, o resto do mundo, da Europa à China, olha e ri-se.
Neste fim-de-semana, Trump teve mais um chilique em público, escrevendo uma dezena de tweets em que se auto-proclama “um génio muito estável”. Não sei se chegará aos quatorze tweets até ao fim do dia. Mas a comparação entre os quatorze pontos de Wilson, que eram sobre o mundo à sua volta, e os tweets de Trump, que são sempre apenas e só sobre ele próprio, pode bem ajudar a descrever o arco que vai da alvorada ao crepúsculo do século americano.
(Crónica publicada no jornal Público em 08 de janeiro de 2018)