|Do arquivo Público 24.11.2017| Um dia encontrei esperando por mim um envelope num local onde eu iria ter uma reunião. Destinatário, era eu. Remetente, não constava. Lá dentro, vinha um livro: Contra a Barbárie. Autor, Klaus Mann.
O apelido é conhecido: trata-se do filho do célebre escritor Thomas Mann (e sobrinho de outro romancista importante, Heinrich Mann). Klaus Mann era um jovem jornalista e escritor quando os nazis subiram ao poder na Alemanha, em 1933. Contra a Barbárie é uma recolha de escritos dispersos seus que vão desde o início dessa década até à derrota da Alemanha nazi na IIª Guerra Mundial. O que mais impressiona neste livrinho é a clareza moral da revolta de Klaus Mann, não só contra o fascismo mas também contra as ambiguidades da geração mais velha de intelectuais alemães.
Um exemplo é o da discussão entre Klaus Mann e o escritor austríaco Stefan Zweig, muito mais famoso então e agora. Uma das razões porque Zweig é um escritor tão procurado hoje é pela história da sua fuga e oposição ao nazismo, em nome de um cosmopolitismo democrático europeu, até ao suicídio em 1942 em Petrópolis, no Brasil. O que muitas vezes não se sabe é que Zweig demorou tempo até encontrar a sua voz na oposição ao nazismo. Quando os nazis se aproximaram do poder, com um bom resultado em 1931, Zweig viu com alguma compreensão a “revolta contra a lentidão” da política europeia — nas áreas do desarmamento e do perdão de dívidas à Alemanha — que tinha motivado algum do voto em Hitler, nomeadamente entre os jovens. É aí que Klaus Mann escreve uma carta magoada ao seu ídolo literário, criticando integralmente o nacional-socialismo, desmontando a hipocrisia das suas críticas à “política europeia” (então de Genebra e da Sociedade das Nações) e repudiando a sua própria geração. Dois parágrafos apenas:
«As coisas em Genebra evoluem devagar, horrivelmente devagar. Nós seríamos os primeiros a saudar qualquer política mais radical — radical num sentido positivo. Mas como é que se pode considerar simpático um radicalismo que vai ao ponto de se opor ao pouco que a geração anterior conseguiu construir? O Senhor, Stefan Zweig, diz: “O ritmo de uma nova geração revolta-se contra o do passado.” Se fosse só isso! Mas parece-me, pelo contrário, que os mais jovens pensam que o ritmo dos mais velhos levaria a uma catástrofe demasiado devagar. Eles querem que a sua querida catástrofe e a “batalha logística” com que os seus histéricos filósofos sonham cheguem mais depressa. Tem alguma lógica apelar a uma guerra revanchista e a um banho de sangue por o desarmamento não ser decidido mais depressa? É pura perversidade. E eu recuso toda e qualquer forma de perversidade em política.»
«Por isso, Stefan Zweig, repudio perante si a minha própria geração, ou pelo menos aquela parte dela que o Senhor veio desculpar. Qualquer aliança entre nós e essas pessoas não é, sequer, imaginável; elas seriam, aliás, as primeiras a repelir, à paulada, qualquer aproximação nossa. A psicologia permite-nos compreender tudo, até as pauladas, mas eu não quero praticar esse tipo de psicologia… Devo afirmar — embora isso vá frontalmente contra a minha honra de escritor — que o fenómeno de neonacionalismo histérico não me interessa. Considero-o pura e simplesmente perigoso. É nisto que consiste o meu radicalismo.»
O livro, publicado em Portugal pela Gradiva, vale desde logo por essa carta (embora as reportagens sobre a Alemanha derrotada sejam também extraordinárias). Mas por que razão é o livro mais importante que li este ano? Basta os excertos acima para entender que há tantas diferenças como semelhanças entre a realidade que ele descreve e a nossa. Não é, pois, por ser um livro que “tem lições para o nosso presente” que ele me interessa principalmente. É antes por ser um livro que não foi escrito para o futuro mas para o seu próprio tempo, trazendo todas as dúvidas, certezas e raivas de alguém que dá tudo por salvar a civilização em que acredita. E isso é mais vivo do que o livro de um escritor a tentar entrar no Panteão. É por essa razão que “Contra a Barbárie”, que se lê no tempo de uma viagem de autocarro, é ainda hoje um documento imperdível.
Klaus Mann lutou pela derrota do nazismo e sobreviveu para a ver chegar. Em 1949, num hotel em Cannes, suicidou-se — como fizera durante a guerra o ídolo a quem tivera de criticar, Stefan Zweig.
(Crónica publicada no jornal Público em 24 de novembro de 2017)