Há quinze anos Jean-Marie Le Pen passou à segunda volta das eleições francesas contra Jacques Chirac, um presidente e candidato de tal forma embrulhado em casos suspeitos que a esquerda francesa, que o detestava, o chamava comumente de “escroque”. Nessa segunda volta, para fazer barragem a Le Pen, o lema informal da esquerda francesa teve mesmo de ser “votem no escroque contra o fascista”.

Faz hoje exatamente quinze anos, Jean-Luc Mélenchon, o candidato da “França Insubmissa” que teve uma magnífica votação no passado domingo, escreveu então uma coluna de opinião para o Le Monde na qual criticava quem pudesse sequer duvidar da necessidade de votar em Chirac para fazer barragem a Le Pen.

“Que consciência de esquerda poderia alguma vez aceitar que se endossasse a terceiros a missão de salvaguardar aquilo que é essencial, a pretexto de que esse esforço fosse indigno de nós? Não cumprir com o nosso dever republicano por causa das náuseas que nos dá o meio de ação a usar é sujeitar-nos a um risco coletivo fora de qualquer proporção com o inconveniente individual” que seria votar Chirac contra Le Pen.

Como facilmente se imagina, seria possível a milhões de franceses de esquerda evitarem votar por um candidato que detestavam por saberem que a sua vitória estaria, em princípio, garantida: “eu não preciso de fazer nada, porque outros se encarregarão de o eleger”. Contra essa ideia, a argumentação de Jean-Luc Mélenchon em 2002 baseia-se no núcleo central das ideias de esquerda e do próprio ideal republicano: responsabilidade individual contra risco coletivo. Recusar agir em defesa da democracia esperando que os outros o façam por nós não é só indigno: é perigoso.

A argumentação de Jean-Luc Mélenchon em 2002 era, por analogia, muito parecida com a que foi usada nas últimas semanas no debate sobre outro bem coletivo, a saúde pública: quem recusa vacinar-se ou vacinar os seus filhos, diz-se, está a pôr em risco a comunidade e a contar com o sentido de responsabilidade do vizinho do lado para nos proteger a todos. Bastou andar pelas redes sociais para ver centenas de pessoas a defender, e bem, este argumento.

(Crónica publicada no jornal Público em 26 de abril de 2017)

Skip to content