E temos obrigações legais, também. A primeira é o princípio de não-rejeição, subscrito por todos os países da União Europeia. Um refugiado tem sempre direito de poder explicar a sua situação e requerer asilo sem ser devolvido à procedência — um princípio que foi consagrado para nós, europeus, quando fugíamos à guerra.
Um jovem refugiado sírio foi entrevistado na sua fuga por uma televisão europeia e disse, em muito breves palavras, o que o fazia buscar asilo:
“Quero um país de que possa fazer parte, um país ao qual possa pertencer. Uma cultura, uma civilização. Não é pela comida nem pelo dinheiro, é pela liberdade. Pela liberdade de espírito, pela educação. É para poder fazer parte do mundo cívico.”
Ao contrário do que se possa pensar, não é invulgar encontrar refugiados com um discurso tão estruturado e bem articulado quanto este. Nos anos de 2010 e 2011 conheci muitos refugiados como este, pessoas como nós, pessoas “normais” — em circunstâncias excepcionais. Muitos tinham mais familiaridade com o direito internacional ou com as Convenções de Genebra do que as delegações parlamentares que os visitavam. Outros falavam sobretudo do medo, das visitas de milícias às suas casas, do irmão assassinado, das ameaças de morte — diziam apenas que queriam viver. Outros agarravam-se aos filhos, explicavam que os queriam afastar da crueldade, que queriam aquilo que nós temos por garantido: que eles pudessem ir à escola.
Não me lembro de nenhum refugiado a quem fosse difícil explicar-se. A tragédia tem uma maneira impressionante de clarificar as coisas e obrigar as mentes a focarem-se.
Mas o nosso lado de cá é feito de segurança, feito de pretextos e preconceitos. Aqui é mais fácil fugir ao essencial. Como o repto que o jovem sírio nos lança. Ele fala de “mundo cívico”, e a pergunta é muito simples: seremos nós parte desse mundo? Seremos nós parte de uma civilização onde predomina o estado de direito e prevalece a consciência humanitária? Nesse caso, não adianta complicar: nós temos uma obrigação moral perante estes refugiados.
E temos obrigações legais, também. A primeira é o princípio de não-rejeição, subscrito por todos os países da União Europeia. Um refugiado tem sempre direito de poder explicar a sua situação e requerer asilo sem ser devolvido à procedência — um princípio que foi consagrado para nós, europeus, quando fugíamos à guerra.
Já ouço as objeções: será que os podemos aceitar a todos? Aceitaremos os que pudermos, e aí teremos autoridade para mobilizar a comunidade internacional que possa receber os restantes. E como se escolhem? Começando pelas categorias prioritárias: mulheres e crianças vítimas de violências física e sexual, menores desacompanhados, doentes a necessitar de tratamento, pessoas em risco de vida. Garantiremos que pelo menos essas não morrem asfixiadas dentro de camiões. E há dinheiro para os integrar? Há centenas de milhões de euros no Fundo de Asilo e Migração negociado em 2014. E há forma de os integrar? Temos os instrumentos do Programa de Reinstalação de Refugiados da UE (sei do que falo: legislei para o criar). E podemos apoiar o ACNUR para fazer o resto que for possível, e reforçar os instrumentos que existem.
A escolha que temos perante nós não é entre resolver todos os problemas do mundo ou não agir. A natureza da ação humanitária é fazer o máximo que for possível, da melhor maneira possível — e nós podemos fazê-lo. A escolha que temos perante nós é a escolha do mundo cívico: ser irmão dos nossos irmãos, e não deixá-los morrer à nossa porta.
(Crónica publicada no jornal Público em 31 de agosto de 2015)
3 thoughts to “Mundo cívico”
Ainda não conheci nenhum refugiado político aqui na Europa Central que não fosse correcto e com estudos, o mesmo já não digo dos que vêm por puras razões econômicas.
A maioria acaba em instalações sobre lotas e é-lhes negado a liberdade de ser, fazer e crescer como seres humanos, na Europa Central.
Desta vez é diferente os povos da Europa estão a abrir as portas de suas casas e acolher os povos que fogem de uma guerra criada pelos nossos governos.
Espero que os nossos governos venham a realizar que não têm o direito de ir destruir as terras dos outros para terem mais barato, eu não tenho carro e energias alternativas deveria ser a prioridade e não a guerra em terra alheia.
Tony Blair e G. Bush deveriam de ser os primeiros a serem trazidos ao tribunal de Haia.
Espero que os tais milhões do fundo sejam mesmo investidos em ajudar os refugiados e não na nova piscina de secretário de estado.
Happy go Days
Tenho lido muitos artigos de opinião sobre a actual crise de refugiados em que a Europa se encontra neste momento, mas nunca em nenhum deles li referencia a legislação, organizações de ajuda ou outras que mais. Talvez esteja a ler os artigos errados, mas parece-me que os europeus em geral estão longe de ser as pessoas “aceitadoras da diferença” que se fazem crer.
Neste texto, vi algo que não vi nos outros. A chamada à lei, a lei da União Europeia. Vi também uma chamada às pessoas, uma atenção dada ao “mundo cívico” ao qual todos nós acreditamos pertencer, mas que não guia a nossa vida nem as nossas opiniões.
Mas qual a forma de aceitar estas pessoas? As nossas leis garantem a refugiados com estudos superiores que possam reconhecer as suas competências de forma acessível nos territórios dos países da União Europeia? Poderão eles alguma vez sentirem-se parte das nossas sociedades integrando a sua experiência e conhecimentos que adquiriram nos seus países? A legislação europeia ou a dos países prevê de alguma forma ajudar estas pessoas no reconhecimento das suas competências? Ou apenas acolhemos os refugiados para garantirem mão-de-obra barata, em vez de os integrarmos realmente nas nossas sociedades?
Por vezes penso que gostava de saber um pouco mais acerca da legislatura, mas como não é a minha área, não sei. Quais são os meios que os países têm para integrar realmente os refugiados nas nossas sociedades?
Na minha opinião, esta é uma das situações mais complexas de resolver, digo a integração de pessoas com culturas e ideais diferentes. Mas o que fazemos realmente para os integrar?
Uma forma correta de integração não exigiria muitos gastos económicos se o país se organizasse para criar bancos de voluntários que se disponibilizassem a ajudar estas pessoas na sua integração, em vez de os colocarmos todos numa casa há espera que a guerra acabe nos países deles… A Europa e Portugal precisam tanto de pessoas com novas ideias e, no entanto, acabamos por desperdiçar todas estas oportunidades que temos para conseguir novas ideias para as nossas sociedades…
Segundo se noticiou recentemente na imprensa portuguesa, salvo erro no Expresso, uma recente sondagem mostraria uma queda de 19% em 2015 para 13% em 2016, da aceitação do daesh entre os jovens árabes entre os 15 e os 24 anos. Sendo que, na Síria, a população de jovens rapazes entre os 15 e os 24 anos é de 1.713.286 (cia factbook) se a sondagem estiver correcta quererá dizer que, só entre os rapazes sírios entre os 15 e os 24 anos, haverá em 2016 um potencial exército de 222,726 rapazes apoiantes do daesh. Não falando do resto do mundo árabe, onde só o Egipto conta com 7,985,589 de jovens naquela faixa etária (ainda segundo o cia factbook) e depois penso no resto do mundo muçulmano e qual seria aquela percentagem, num país muçulmano ultra conservador, como por exemplo o Paquistão com os seus 22,016,207 (mesma fonte)de jovens rapazes entre os 15 e os 24 anos. Longe de mim propor o não acolhimento de refugiados mas os números são os números e depois lembro as mulheres do YPG na Síria, como as mulheres peshmergas no norte do Iraque que combatem o daesh,(7000 mulheres voluntárias, com idades entre os 18 e os 40 anos), e ponho-me questões ao lembrar as brigadas internacionais na guerra civil espanhola.
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