Putin não quer um compromisso. Quer uma estrada por terra até à “sua” Crimeia, e o que mais vier nos próximos tempos. Putin vive na ordem imperial, e quer — como toda a gente, achará ele — um império.
Pelas minhas contas, são quatro as guerras da Crimeia na era moderna.
Em primeiro lugar, no fim do século XVIII, quando Catarina a Grande da Rússia conquistou o Canato da Crimeia, vassalo do Império Otomano. Não só a Crimeia como quase todo o contorno do Mar Negro pertencia a povos turcos ou aparentados, embora polacos, lituanos, ucranianos, russos e até suecos tenham tentando descer o rio Don e conquistar aquela região (também um português por lá andou, o grande médico António Ribeiro Sanches, judeu fugido à Inquisição).
Em segundo lugar, a Guerra da Crimeia propriamente dita,
quando no meio do século XIX, pressentindo de novo a fraqueza do Império Otomano, o czar Nicolau I da Rússia quis ser proclamado protetor de todos os cristãos do Médio Oriente, até Jerusalém. Os franceses e os britânicos (com “ingrata” ajuda austríaca, segundo Metternich) juntaram-se para impedir que isso acontecesse e concentraram a guerra na península da Crimeia para travar o expansionismo russo na retaguarda. Essa guerra foi a primeira e quase única perturbação do Concerto da Europa que saiu do Congresso de Viena, após as guerras napoleónicas.
A “terceira guerra da Crimeia” pode ser a campanha ucraniana do exército nazi contra a União Soviética, que incluiu uma ofensiva da Crimeia. Esta guerra já pertence à nossa memória secular — sou amigo de um alemão cujo pai perdeu as duas pernas nessa ofensiva. No contexto da operação Barbarossa que destroçou as tropas de Hitler na URSS, representa a segunda vez em que um conquistador vindo da Europa “peninsular”, por oposição à grande massa eurasiática, se perdeu a lutar contra os russos: Napoleão ao regressar de Moscovo, Hitler em Estalinegrado, hoje Volgogrado, não muito longe da atual fronteira com a Ucrânia — dista oitocentos quilómetros de Kharkiv, a cidade ucraniana que é um centro da cultura em língua russa, e a que Putin desejaria chegar, mas que se tem aguentado firme no campo pró-ucraniano.
A quarta guerra da Crimeia foi no ano passado e nela não se disparou praticamente um tiro. Mas foi a partida para o plano ucraniano de Vladimir Putin. Chamar-lhe “plano” talvez seja exagerado: ninguém sabe se Putin deseja apenas vingar-se da Ucrânia por lhe ter “fugido”, ou se quer enfraquecê-la, desmembrá-la, ou simplesmente tornar-lhe a vida impossível. O plano, porém, é aqui menos importante do que o lastro histórico: Putin conhece bem a história das quatro guerras da Crimeia, e que papel elas desempenharam na definição da história europeia.
O que todas elas têm em comum, desde logo, é uma inserção no contexto imperial europeu. As guerras da Crimeia nunca foram de construção estatal ou nacional. Todas elas foram guerras de construção, desconstrução, ou perturbação de uma ordem imperial. Essa é uma gramática que Putin domina bem (foi ontem firmar uma aliança com o Egito, lugar lendário da luta contra o Império Otomano, desde Napoleão). Hollande e Merkel desejam ignorá-la, e continuam a insistir num plano de paz que Putin simplesmente não deseja. Putin não quer um compromisso. Quer uma estrada por terra até à “sua” Crimeia, e o que mais vier nos próximos tempos. Putin vive na ordem imperial, e quer — como toda a gente, achará ele — um império.
(Crónica publicada no jornal Público em 11 de Fevereiro de 2015)