O passivo de uma pessoa, costuma dizer-se, é o ativo de outra. A questão é se a primeira tem condições para pagar; caso contrário, o ativo da segunda desaparece. Cabe então à política criar condições para que o problema se resolva. Nada se perde, tudo se transforma.
Dá-se hoje uma coisa muito bizarra: um governo social-democrata, na definição europeia, fazendo uma coisa social-democrata.
É ali no Balcãs, e é um membro da União Europeia. Não, não na Grécia. Mais acima, sim, um pouco mais a norte, ali na costa do Adriático — na Croácia. O governo da “coligação cocóricó” (a sério, tem mesmo esse nome, ou “kukuriku” em croata, por causa do nome do restaurante onde foi criada pelos quatro partidos de centro-esquerda que a compõem) anunciou um plano para desendividar os seus cidadãos mais pobres.
O plano chama-se “Começar de Novo”
. A partir de hoje, sessenta mil pessoas com rendimentos abaixo de 150 euros, num país com cerca de quatro milhões de habitantes, podem ver anuladas as suas dívidas até cinco mil euros. O plano foi acertado com nove bancos, companhias de telecomunicações (para as dívidas de telemóvel) e companhias de serviços públicos (água, gás, eletricidade), e o governo calcula que o custo total será de menos de trinta milhões de euros, a repartir entre os credores e as contas públicas. Este montante é uma pequeníssima parte da dívida privada croata — menos de um por cento — mas representa uma parcela considerável dos devedores do país. Vinte por cento dos devedores croatas poderão solicitar o cancelamento das suas dívidas.
O Washington Post, onde encontrei a notícia, chama-lhe uma medida “excecional e sem precedentes”. Rara pode ser, mas sem precedentes não é certamente. Desde o Código de Hamurabi, escrito na Mesopotâmia há 3500 anos, que os sistemas legais inventados pela humanidade prevêem a hipótese de perdoar dívidas excessivas ou impagáveis. E se o Banco Central Europeu tem estado desde 2011 a injetar liquidez nos bancos da zona euro, é refrescante ver um país da UE (embora não do euro) tentar estimular a sua economia a partir de baixo. Os endividados croatas tinham vedado o acesso às suas contas bancárias; a partir do momento em que o plano limpe as suas dívidas podem voltar a usar as contas e a ser cidadãos económicos de pleno direito.
E o exemplo croata não é único na nossa parte do mundo. Como notei nesta coluna há quase um ano (“Oh os bancos, os bancos, os bancos”, de 3 de fevereiro de 2013), o governo islandês implementou também um plano de quatro anos para aliviar a dívida imobiliária dos seus cidadãos, financiado por um imposto levantado sobre a banca.
As medidas de desendividamento dos cidadãos devem ser cuidadosamente preparadas e é melhor que não funcionem sozinhas (por exemplo, um plano como o islandês deve ser acompanhado por medidas de reabilitação urbana e ordenamento do território; um plano como o croata, por medidas de criação de emprego e reforço das prestações sociais) mas, particularmente em Portugal, deveríamos segui-las com atenção. Por muito que se fale de dívida pública no nosso país, é entre os indivíduos, as famílias e as empresas que somos um dos países mais endividados do mundo.
O passivo de uma pessoa, costuma dizer-se, é o ativo de outra. A questão é se a primeira tem condições para pagar; caso contrário, o ativo da segunda desaparece. Cabe então à política criar condições para que o problema se resolva. Nada se perde, tudo se transforma.
(Crónica publicada no jornal Público em 02 de Fevereiro de 2015)
2 thoughts to “Tudo se transforma”
Dando-se dinheiro à banca para salvar as finanças, os bancos emprestarão muito pouco dinheiro às empresas porque numa economia recessiva o risco é elevado, pegam neste dinheiro e investem no melhor negócio especulativo que é o “resgate das dívidas soberanas”.
Os lucros distribuem-se pelos accionistas que o gastarão noutras economias.
Dando-se dinheiro às empresas com a promessa de criar postos de trabalho menos de 20% entrará directamente na economia local como salários, o resto poderá ser investimento e repartido em lucros que não passarão obrigatoriamente pela economia local.
Dando-se dinheiro aos que menos têm, inevitavelmente esse dinheiro será todo gasto nas necessidades básicas animando toda a economia ao redor e em vários patamares, antes de terminar novamente nos bancos.
É como um rio que não nasce com o caudal máximo na foz, mas que vem juntando água num sistema com milhões de afluentes rios, ribeiras, riachos, regatos, regos, desde o ponto mais alto na montanha.
Sim, parece q n se aprende… dar sempre dinheiro a essa gente seriíssima da banca!
Agora é o escândalo do banco suíço, ajudando (mais uma vez) os ricos a fugir aos impostos…
E vamos ver como a Europa trata este caso ‘da Grécia’, q é o de todos nós …e q é ‘ir ao fundo da questão’ e do(s) erro(s) cometido(s) com ‘estupidez’ (económico-matemática) e completa indiferença em relação a povos e milhões de pessoas.
Mas q o Syriza está e e continua a dizer como o rei vai nu, com garbo e valentia, ai isso é q está, com justiça(-eza) e coragem, verdade lhe seja feita…
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