Isto só o Charlie poderia desenhar, porque está a falar dele mesmo.
Dizia o comediante George Carlin que “o dever do humorista é procurar onde estão os limites e violá-los intencionalmente”. É o que faz a primeira capa do Charlie Hebdo após a matança de doze dos seus autores e colaboradores perpetrada por fanáticos islamistas.
Muitos de vós já a terão visto: representa Maomé segurando um cartaz “Je Suis Charlie”, com uma lágrima ao canto do olho, e um título nas habituais letras garrafais manuscritas: ESTÁ TUDO PERDOADO. Tudo perdoado como? Mas como pode estar perdoada um dos ataques mais violentos de sempre a um jornal? Como pode o cartunista Luz, autor desta capa, fazer isto com o assassinato dos seus próprios amigos?
A resposta está no dever do humorista:
saber onde o limite, e franqueá-lo. Desta vez, foi o nosso próprio limite. É demasiado brutal, demasiado cedo, para que consigamos perdoar. Muito menos para que perdoemos com estaligeireza, que passemos uma esponja sobre tudo. Sabemos que não pode ser assim, que ficaram marcas. E depois entendemos: o Charlie continua a saber chocar. Choca a nossa dor, indo além da dor deles próprios, que só pode ser muito maior do que a nossa.
Tudo foi dito e tudo foi desenhado nos dias que se seguiram ao ataque. Os cartunistas de todo o mundo reagiram pela criatividade e não pelo silêncio. Mas isto só o Charlie poderia desenhar, porque está a falar dele mesmo.
A resposta que o Charlie deu ao ataque de foi alvo é, em si, um tratado de filosofia moral, e de religião também. Mas, como todas as coisas que atingem este nível de desconforto, profundidade e risco, não há muitas palavras a acrescentar. Por isso vai hoje uma crónica curtinha, para poder acomodar a ilustração em causa e dizer o quanto a admiro.
Vejamos: o Charlie tem o topete de gozar conosco, com o transbordar de solidariedade em que participámos. Todos somos Charlie! — até Maomé, o suposto inspirador dos assassinos. É um gozo de leve, carinhoso quase, mas está lá.
Em segundo lugar, o Charlie desenha de novo o rosto de Maomé. Não se acobarda, não desiste. Mas é o próprio Luz que diz que quando desenhou o “homenzinho segurando o cartaz”, aquele Maomé de caricatura despertou nele um riso que levou à ideia do perdão.
A chave da capa está então nisto: não é tanto o homem que desenha Deus, mas acima de tudo o Charlie que perdoa Maomé. Estamos perante uma mensagem pacifista, é certo, mas se pensarmos bem ainda mais blasfema do que antes — de uma blasfémia calma e poderosa.
Esta é uma maravilhosa inversão humanista: o homem está acima de Deus, por ser capaz de perdoar. Todos somos Charlie, é certo. Charlie, pelo seu lado, é divino.
(Crónica publicada no jornal Público em 14 de Janeiro de 2015)
2 thoughts to “Está tudo perdoado”
Ah, como é belo o perdão! Sobretudo, sobretudo, nunca falar, nem sussurar sequer, sobre a lei francesa Fabius-Gayssot, vulgo lex faurissoniana, que proíbe contrariar o dogma de polichinelo das câmaras de gás homicidas dos nazis, não é verdade? É para isso que a abençoada Europa paga — e com abandono paga– aos seus euro-deputados: para perdoar…
Caro Amigo Rui Tavares.
“É mais fácil um elefante fugir de um rato, do que um rato do elefante.”
“Por Deus tudo, Contra Deus nada.”
Já deve ter lido ou ouvido estes provérbios.
Costuma-se dizer que o Povo é sábio. Eu acredito.
Se conseguir interpretar estes dois provérbios, por favor.
Mande um comentário para o endereço:
HUMANOPOLITIKBLOGSPOT.COM
Titulo – Por um sol na Europa
Obrigado.