Nos tempos que correm, não há missão mais urgente e primeira do que exigir, para nós e para os outros, esta justa liberdade sem dominação.
Um rebelde e republicano inglês, Richard Rumbold, à espera de ser enforcado no ano de 1685, disse uma vez estas palavras: “não pude nunca acreditar que a Divina Providência tivesse dado ao mundo uns poucos homens, já calçados de botas e esporas, e prontos para cavalgar, e criado milhões de outros já com selas nas costas e rédeas na boca, prontos para serem cavalgados”.
Encontram-se estas palavras no início do último livro do filósofo Philip Pettit sobre o conceito cívico e republicano de liberdade (“Just freedom” — ainda não editado em Portugal). O sentimento que as anima não está desatualizado.
Philip Pettit escreve que, nas últimas décadas, o conceito dominante de liberdadefoi o de não-interferência, que marcou todas as políticas neoliberais, conservadoras e da “terceira via” da nossa geração. Segundo a liberdade como “não-interferência”, tudo irá pelo melhor dos mundos quanto menos o estado se meter no caminho de pessoas e empresas. Se um indivíduo assinou um contrato danoso ou se sujeitou a trabalhar de forma precária, foi no exercício de umaliberdade com que ninguém interferiu. Esta ideia e as políticas justificadas por ela criaram uma espécie de novo feudalismo em que vivem agora pessoas e países, nominalmente livres mas sempre dependentes.
Para regressar à imagem de Rumbold, é como se pudesse considerar-se que o cavalo é livre desde que o cavaleiro não use as esporas. Mas, por mais que o cavaleiro deixe o cavalo pastar à vontade, resta-lhe sempre a possibilidade de o dominar quando desejar.
É por isso que Pettit propõe um conceito de liberdade, que recuperou da filosofia antiga e do Renascimento, como “não-dominação”. Segundo este conceito, nós não somos livres quando estamos dependentes da boa-vontade de outrem (um credor, um patrão, um cônjuge) mesmo que estes nos deixem em paz ou até nos permitam viver no conforto. Para sermos livres, precisamos de não viver sob dominação, e de estarmos sempre em condições de exercer a nossa independência sem dano.
É impossível ler este livro e não pensar na situação em que nos encontramos em Portugal e na Europa. Pettit propõe três testes para a liberdade: o da justiça social, o da democracia e o da soberania. O primeiro resume-se assim: “pode a pessoa olhar os outros nos olhos, sem deferência nem medo?”. O segundo: “pode a pessoa participar, em condições de igualdade, nas decisões que afetam a sua comunidade?”. E o terceiro: “tem a comunidade recursos e proteções suficientes para melhorar a vida dos seus, sem inferioridade perante outros no plano internacional?”.
Somos livres então? O nosso olhar para o patrão, o credor ou a autoridade é sem medo ou deferência? Participamos em condições de igualdade na tomada das decisões políticas que nos afetam? A nossa comunidade política pode dar prioridade às necessidades dos cidadãos sobre as exigências externas? A resposta é neste momento triplamente negativa e deixa-nos, claramente, sob dominação.
O nosso conceito de liberdade poderia até ser mais ambicioso, e incluir a possibilidade de cada indivíduo florescer até onde levar o seu potencial. Mas, nos tempos que correm, não há missão mais urgente e primeira do que exigir, para nós e para os outros, esta justa liberdade sem dominação.
(Crónica publicada no jornal Público em 19 de Novembro de 2014)