A esquerda é, e será sempre, uma aliança. Em democracia, os governos transformadores da esquerda passaram sempre — da construção da social-democracia escandinava à Frente Popular em França, do New Deal de Roosevelt ao Brasil de Lula e, mais recentemente, à Islândia após a crise — pelo trabalho conjunto entre a esquerda e centro-esquerda. Esse é o debate que é necessário fazer em Portugal, e que põe em causa o imobilismo e o conservadorismo de tantos.
Ao sétimo dirigente do Bloco de Esquerda que tenta associar-me à aprovação do Tratado Orçamental e do “visto prévio” sobre os orçamentos nacionais, — contei, além dos coordenadores, Fernando Rosas, José Manuel Pureza, João Teixeira Lopes e Francisco Louçã, um pouco por todo o lado — creio que se compreenderá que eu reponha a verdade dos factos. A mais recente tentativa é de Jorge Costa, num artigo no esquerda.net que merece uma resposta mais abrangente pelo debate de conteúdo que traz. Ora, estes autores não são apenas dirigentes políticos que fazem o seu combate contra quem vêem, infelizmente, como adversários (mais sobre isto no fim deste texto). São pessoas com responsabilidades no debate intelectual e político. Esperar-se-ia que estas responsabilidades, e a necessidade de fidedignidade no difícil momento por que passa o país, levassem a melhor sobre a vontade de combater supostos adversários que não o são.
Comecemos pelo Tratado Orçamental. A sua ideia nasceu num Conselho Europeu na madrugada de 9 de dezembro de 2011. Poucas horas depois escrevi uma crónica para o Público chamada “A Madrugada dos Irresponsáveis”, ainda os partidos portugueses não tinham acordado para o que aí vinha. Na mesma semana publiquei um ensaio, escrito no próprio dia, em que descrevia o que se tinha passado nos seguintes termos:
“Hoje, dia 9 de dezembro de 2011, foi um dos piores dias da Europa do novo século, talvez o pior. Os líderes da zona euro… deram um golpe de morte à União Europeia. O novo tratado em que se lançaram vai ter de ser construído, por razões legais, fora da União… Esta será uma confederação feita à força mas que nunca terá força para lidar com as debilidades de uma moeda federal. Entretanto, toda e qualquer esperança de democracia à escala europeia morrerá se este plano for avante.” E terminava: “Devemos transcender diferenças menores para responder a estas necessidades maiores: evitar uma segunda depressão e conquistar a democracia europeia. Para o conseguir, esta geração de líderes, com a irresponsabilidade de todos, de Merkel a Sarkozy, de Cameron a Passos Coelho, terá de ser suplantada por um discurso público, cívico, fraterno, que inverta este plano inclinado de rancor e recriminação”.
A luta contra o Tratado Orçamental levou-me a escrever um livro — “A Ironia do Projeto Europeu” — no qual o capítulo central é uma denúncia do Tratado Orçamental, que descrevo como um “duplo monstruoso” disposto a matar o projeto europeu para satisfazer a sua obsessão com a austeridade. Nos dias antes da aprovação do Tratado Orçamental no nosso Parlamento, alertei para o facto de ele poder ser contra a Constituição da República Portuguesa, e juntei a minha voz àqueles que, como Mário Soares, Manuel Alegre, Arménio Carlos, João Galamba, Pedro Nuno Santos ou tantos outros no próprio BE e no PCP, queriam impedir que Portugal aceitasse aquela chantagem. Depois de ele ter sido aprovado, é sabido que rejeitei aberturas do PS para participar nas suas listas às europeias citando, em primeiríssimo lugar, o facto de o PS ter contribuído para que Portugal fosse um dos primeiros países da UE a aprovar o Tratado Orçamental. Tudo isto é bem conhecido de quem se mantenha informado, e certamente conhecido dos autores destas alegações. Com todo este historial documentado, como se explica que estes dirigentes e intelectuais públicos insistam em algo que sabem certamente ser falso?
É aí que, nas entrelinhas, todos deixam passar a ideia de que não fui eu, mas os Verdes europeus — bancada parlamentar na qual me sento depois da ruptura provocada pelo então coordenador do BE — a aprovarem o Tratado Orçamental. Só que, além de ser uma tentativa canhestra de “culpa por associação”, isto é também mentira: o Tratado Orçamental, sendo um tratado fora da União, não foi aprovado no Parlamento Europeu, mas alvo de resoluções nas quais os Verdes europeus tiveram sempre uma posição crítica perante todo o exercício. Ou talvez queiram estes autores trazer à colação que os Verdes alemães aprovaram o Tratado Orçamental no Bundestag. Pediram-me de facto para participar num debate no Conselho Federal deste partido, em Berlim, onde fui como convidado exterior, defendendo o “Não” ao Tratado, que perdeu por três votos. Sou então culpado de não ter sido mais persuasivo… mas se esse argumento for válido, deveremos então passar a pedir ao BE explicações pelos seus colegas de bancada cipriotas, que transformaram o seu país numa máquina de lavar dinheiro dos oligarcas russos e de deixar passar armas para Assad na Síria.
Passemos ao visto prévio. A questão aqui é semelhante: poderei eu, depois de anos a escrever contra a austeridade e a troika, cuja ilegalidade tenho vindo a argumentar sustentadamente, ter votado a favor do visto prévio aos orçamentais nacionais, no quadro do chamado “semestre europeu”? E a resposta é simples: não. Como é do conhecimento de quem segue estes temas, o semestre europeu, e o seu sistema de vigilância aos orçamentos nacionais, foi instituído por um pacote legislativo de seis relatórios (o chamado “six-pack”) no qual eu votei exatamente como o BE: cinco votos contra, uma abstenção. Repito, exatamente como o BE. Incluem-se nesses relatórios uma proposta de diretiva “que estabelece requisitos aplicáveis aos quadros orçamentais dos Estados- Membros” (votei contra); um regulamento “relativo ao reforço da supervisão das situações orçamentais e à supervisão e coordenação das políticas económicas” (contra); um outro regulamento “relativo à aplicação eficaz da supervisão orçamental na área do euro” (contra); ainda um outro “relativo às medidas de execução para corrigir os desequilíbrios macroeconómicos excessivos na área do euro” (contra); mais um “sobre prevenção e correcção dos desequilíbrios macroeconómicos” (abstive-me, tal como os deputados do BE); e, finalmente, um regulamento tendo por título “aplicação do procedimento relativo aos défices excessivos” (contra). Mais uma vez, pode alegar-se que votei contra a minha bancada, que por sua vez votou à esquerda dos socialistas. E daí? Isso significa que me mantive coerente e que não mudei de programa, como infundadamente tenta fazer passar Jorge Costa.
Mas então, a que se referem estes dirigentes e intelectuais públicos, para lá de aparentarem não ter qualquer preocupação com a fidedignidade dos seus textos e alegações? A um relatório da autoria da independente socialista Elisa Ferreira, de “acompanhamento e avaliação dos projetos de planos orçamentais e correção do défice excessivo dos Estados-Membros da área do euro”, que como se vê não pertence ao pacote que instituiu o semestre europeu e o visto prévio, mas que os avaliou, corrigindo-os para incluir os procedimentos por excedentes continuados de países como a Alemanha, que exportam deflação para todos os outros, e para permitir o escrutínio parlamentar das medidas da troika, possibilitando assim os passos que levaram à atual investigação sobre a possível ilegalidade da troika, investigação que há muito defendo. Desse relatório, sim, votei a favor. Pretender que isso seja votar a favor do “visto prévio” faria não só de mim, mas da própria Elisa Ferreira, defensores da troika e da austeridade. Ridículo para qualquer observador sério, ou mesmo minimamente imparcial, destas questões.
Um dos efeitos destas alegações, no entanto, é não dar espaço nem tempo para o debate verdadeiramente substantivo. E eu não gostaria que isso acontecesse. Passo então a duas respostas ao texto de Jorge Costa, o único destes autores que se deu ao trabalho de ler e comentar o programa político do LIVRE. E deve ter sido um trabalho aturado, porque nas quatro dezenas de páginas e centenas de ideias e propostas, resultado de um processo deliberativo que contou com quase duas centenas de emendas de dezenas de pessoas, Jorge Costa decidiu não encontrar nenhuma semelhança: nem na defesa do ensino público ou da saúde pública, nem na recusa da privatização da Segurança Social, nem na defesa de uma política de ordenamento do território e qualificação urbana, nem na proposta de uma Carta dos Direitos Fundamentais do Cidadão Sénior, nem na campanha por um Plano de luta contra a pobreza infantil. Não; Jorge Costa conseguiu achar discordância na proposta de constituição de um fundo soberano, cujos juros iriam para financiar projetos científicos e educacionais, a estabelecer no prazo de uma geração, ou seja, cerca de trinta anos. É o que se chama ir longe para encontrar diferenças…
O texto de Jorge Costa é porém muito importante, no sentido em que finalmente permite identificar qual é a grande diferença que vale a pena debater na esquerda portuguesa, hoje. Diz ele que “o LIVRE propõe um programa de ajustamento; para governar com o PS, a política da esquerda tem de empobrecer.” Ora isto é notável, após quarenta anos de democracia e décadas de trabalho parlamentar, em pleno século XXI: ainda há quem veja o trabalho de compromisso e encontro de um programa comum como necessariamente “um empobrecimento”. Mais extraordinário é que o faça aparentemente sem olhar para o verdadeiro empobrecimento que se dá, todos os dias, à nossa volta.
Quem assim pensa não tem apenas dificuldade em entender as necessidades da democracia que, em Portugal como em todo o mundo, se faz pela busca de soluções partilhadas para problemas concretos. Tem dificuldades em entender a própria lição histórica da esquerda. A esquerda é, e será sempre, uma aliança. É e será sempre plural. Quando nos esquecemos da simples lição de que “juntos vencemos e divididos perdemos”, a esquerda perde a sua capacidade transformadora. Em democracia, os governos transformadores da esquerda passaram sempre — da construção da social-democracia escandinava à Frente Popular em França, do New Deal de Roosevelt ao Brasil de Lula e, mais recentemente, à Islândia após a crise — pelo trabalho conjunto entre a esquerda e centro-esquerda. Esse é o debate que é necessário fazer em Portugal, e que põe em causa o imobilismo e o conservadorismo de tantos, à esquerda e à direita. E é por isso que tanta gente tenta silenciar esse debate com distorções e falsidades. Mas não silenciarão aqueles muitos que querem que esse debate se faça e se cumpra, porque o país já sofreu demasiado com este estado de coisas e catástrofes maiores ainda estão ao virar da esquina, se nos deixarmos intimidar.
One thought to “Juntos vencemos; divididos perdemos”
É até confrangedor o ‘espectáculo’ q o Bloco de Esquerda (BO) dá de si próprio…!
Pessoas inteligentes (bem, n sei de q inteligência se trata, q há mtªs q n dão para nada –pelos vistos) a quem dei e por mt tempo o meu voto e de quem se esperaria aquele mínimo de honestidade intelectual e, pelo menos (‘ainda bem’ q não, assim ficamos a saber –e a confirmar– a qualidado do bicho…), q n fizessem [como já tinha feito, + grave, mas ‘do mesmo calibre’ moral e político, Louça em relação a Rui Tavares (TR), voltando mesmo o bico ao prego ao dizer (na TV, onde passa por um quase ‘senador’ e homem sério!) q ‘a perseguição/caça ao homem’ tinha sido feita pelo RT…!!!], nem metessem assim a pata na poça, ia eu a dizer, de 1 forma tão básica (e reles) q até já parece perseguição (estarão com medo de alguma coisa?), expondo factos errados, mentindo sobre pessoas, a sua ‘honra pessoal e política’ e factos, COMO SE NINGUÉM FICASSE A SABER Q É MENTIRA!!!
Enfim, já tinham idade, cronológica e política, para NUNCA fazer issso ou cair em tamanha esparrela (auto-posta a jeito)!
Além do mais, constitui e mostra qq coisa de mt feio (e perigoso) q o BE tem vindo a demonstrar, regularmente [lembram-se, tb, q os grandes (Fazenda?) lá do sítio, tb n sabiam quem era Daniel Oliveira…? qd ele teve a indelicadeza de ser livre e crítico.
Uma maçada!]
Não auguro, aliás (e cada vez mais, sobretudo com este tipo de mentalidade, atitude e comportamentos), NENHUM FUTURO para o BE!
Cada vez mais orgulhosa e ridiculamente só e o facto de o LIVRE poder ir às europeias, está a pôr mt gente nervosa…e a descoberto!