Mandela preferiu ser amado a ser temido. Teve o poder absoluto, e não foi minimamente corrompido por ele. Foi aquilo que era.
Toda a gente sabe porque gosta de Mandela. Mas, mesmo que fosse possível ler os milhares de textos que sobre ele se escreveram nos últimos dias, seria difícil entender o porquê do porquê.
A minha hipótese: Mandela violava as principais regras da cultura política dominante. Por isso, mais do admirá-lo enquanto político que conseguiu coisas boas, adorámo-lo como algo mais do que isso.
Curiosamente, este é um daqueles casos em que as banalidades se aproximam muito mais de nos conseguir explicar qualquer coisa do que os contrariadores de banalidades. Vocês sabem do que eu estou a falar. É natural, em ocasiões destas, que se digam muitos lugares-comuns. E é natural, depois, que apareça gente rezigando com os lugares-comuns. Vasco Pulido Valente, nestas páginas, protestava com o facto de não se ter dito que Mandela era advogado ou que pouco se tenha falado do contexto da queda do Muro de Berlim, “trivialidades que, parecendo que não”, etc.. Ora, parecendo que sim, essas trivialidades acrescentam mas não aprofundam. Quantos políticos foram ou são advogados? Quantos viveram durante a queda do Muro de Berlim? Tenho impressão que noventa e nove por cento de todos os políticos atuais.
Sim, Mandela foi um político do nosso tempo. Excelente político, por sinal. Mas dizer que ele foi um político que viveu neste contexto é um pouco como dizer que um futebolista obedece às leis da física ou que uma pianista toca notas. Todos o fazem, sem exceção. E daí? Em certos casos, esta informação necessária está muito longe de ser suficiente.
Grosso modo, a cultura política que nos domina baseia-se em três supostas verdades: “é melhor ser temido do que ser amado” (Maquiavel); “o poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente” (Lord Acton); “o que parece, é” (Salazar).
Estas são supostas ser leis férreas da política e, mais do que nunca duvidar delas, é necessário ser visto em público como não acreditando em qualquer outra coisa para lá disto.
Ora, Mandela desmente todas aquelas leis. Preferiu ser amado a ser temido. Teve o poder absoluto, e não foi minimamente corrompido por ele. Foi aquilo que era.
Mandela foi aquilo a que no século XVIII se chamava “um amigo da humanidade”, categoria que assumia em primeiro lugar uma dimensão sentimental (não é por um teorema ou um axioma que somos amigos disto ou daquilo) e por outro lado preenchia de conteúdo a dimensão humana: ser amigo da humanidade significava, por exemplo, abominar a crueldade, tolerar o erro, compreender o pecado e amar o pecador. Sim, é verdade que não se nasce assim. As páginas de Mandela sobre como na prisão aprendeu a admirar a cultura dos brancos africânderes, ou a passagem da Nobel da Literatura Nadine Gordimer sobre como ele lhe contou que a mulher tinha um amante, são testemunho de uma evolução. A evolução de alguém que, para ser amigo da humanidade nos outros, teve de entender a humanidade em si mesmo. A evolução que todos podemos fazer.
Se fosse um santo ou um deus, Mandela teria deixado a África do Sul e o mundo perfeitos. Mas sendo humano, ele mostra-nos que o resto fica para nós — se, em vez de acreditarmos em patranhas sobre a política como atividade ressequida específica aos tecnicistas da intriga, escutarmos o eco da grande simplicidade que reside em cada um de nós.
(Crónica publicada no jornal Público em 9 de Dezembro de 2013)
One thought to “Amigo da humanidade”
Magnífico texto.