O cenário da terceira estrofe é uma pequeníssima ilha italiana. À nossa frente, centenas de caixões com cadáveres de refugiados africanos. Os mesmos que Durão Barroso visitou, prometendo que a Europa não ficaria quieta, que a Europa faria tudo, o mais depressa possível, para resolver um problema europeu.
Aqui está uma ideia: o hino da Europa e da União, composto por Beethoven, não tem oficialmente letra, embora tenha sido feito a partir de um poema de Schiller (Ode an die Freude, ou Ode à Alegria). Sugiro que se escreva um novo poema, a partir de três episódios recentes.
A primeira estrofe contaria a história de Maria, o “anjo louro” que entusiasmou a imprensa europeia durante uns dias. Maria foi descoberta junto de uma família cigana pela polícia grega. Após testes genéticos, demonstrou-se que não poderia ser filha daqueles pais. Ainda antes que as autoridades tivessem ido verificar as pistas dadas pelo casal de suspeitos, a sua fotografia circulou por toda a Europa, fomentando suspeitas sobre tráfico de crianças e dando esperanças a pais de filhos desaparecidos. Algures no leste da Europa um bando de racistas atacou um acampamento cigano porque as crianças eram demasiados brancas. Entretanto, chegaram as notícias de que os verdadeiros pais de Maria eram um casal de ciganos búlgaros ainda mais miseráveis do que os seus pais adotivos gregos. Descobriu-se que os ciganos podem ter filhos louros. Mas nunca anjos.
A segunda estrofe seria dedicada às escutas telefónicas aos líderes políticos europeus. Nos primeiros versos contar-se-ia a história de como eles fecharam as portas dos seus países e os céus sobre as suas cabeças a qualquer avião que transportasse Edward Snowden, denunciador de abusos dos serviços secretos americanos. Mas logo a seguir teríamos um refrão em coro, pelos mesmo líderes, quando descobrissem que eles próprios tinham sido escutados pelos serviços secretos norte-americanos. Um tenor francês e uma contralto germânica seriam enviados para se escandalizar pessoalmente com Obama. O francês já disse o que queria: cooperação bilateral com os EUA, um velho sonho dos serviços secretos franceses. A alemã foi instrumental para que noventa milhões de mensagens financeiras europeias sejam transferidas e analisadas todos os meses pelos EUA. A ambos não preocupa a espionagem em massa de 500 milhões de europeus, nem talvez a espionagem a eles dois apenas. Esperem passar o escândalo e cantarão em surdina.
O cenário da terceira estrofe é uma pequeníssima ilha italiana. À nossa frente, centenas de caixões com cadáveres de refugiados africanos. Os mesmos que Durão Barroso visitou, prometendo que a Europa não ficaria quieta, que a Europa faria tudo, o mais depressa possível, para resolver um problema europeu — antes do Conselho ter decidido adiar qualquer decisão. É menos difícil do que parece: com a nova lei do Fundo Europeu de Refugiados, os estados-membros têm dinheiro disponível para reinstalarem os casos mais vulneráveis entre as pessoas mais vulneráveis do mundo. Os EUA reinstalam cerca de 80 mil refugiados por ano, de entre os 200 mil que o ACNUR considera prioritários. A Europa reinstala míseros 5 mil. Dos restantes, muitos desesperam e metem-se nos barcos para atravessar o Mediterrâneo, agora que já não há Kadhafi para os fazer morrer no deserto. O refrão diria: porque não vieste a Lampedusa, Angela? porque não vieste a Lampedusa, François? porque não vieste ver-nos?
E é tudo. Aqui fica o esboço da nova ode, a decalcar na música de Beethoven, à espera de um poeta com mais talento do que eu.
7 thoughts to “Hino à hipocrisia”
Bom dia, parabéns pelo publicação!
Vou directo à pergunta que não quer calar? É séria e tem uma base social sólida a intenção de criar um partido? Vai ser para acabar igual aos outros? Estou interessado em colaborar se for para fazer diferente.
Grato pela atenção.
David
P.S. Fique à vontade para apagar este comentário se o entender. O objetivo foi contactar e colocar estas questões a si, na tentativa de clarear as ideias.
Caro David, obrigado pela mensagem e pela disponibilidade para participar. Estou a tentar (com alguma dificuldade) responder a toda a gente que entrou em contacto comigo após a entrevista ao Expresso. Tudo o que se seguir será certamente aberto e transparente. Darei notícias em breve.
Um abraço,
Rui Tavares
Olá, obrigado pela resposta!
Fico a aguardar notícias suas e reitero que estou disponível para participar.
Abraço,
David
Parabéns pelo seu artigo de opinião publicado hoje no “Público”.
Cumprimentos,
Miguel Miranda
Do blog “Blasfémias” com a devida vénia:
por vitorcunha
Uma candidatura de Sócrates para o Parlamento Europeu seria excelente para Portugal e para a Europa. Os portugueses poderiam respirar melhor sem a permanente erotização mediática do mister platina-bancarrotas e, em simultâneo, poderiam “minar por dentro” essa instituição sovietizada da nova União Europeia recorrendo a alguém com provas dadas na destruição de sustentabilidade.
Aqui está algo que nunca pensei dizer: eu voto Sócrates.
Do blog “A barbearia do Sr,Luís”, com a devida vénia:
“Parece-me que Sócrates ao anunciar que não pretende “favor popular” (de imediato) preferiria, ao contrário daquilo que Ascenso Simões sugere, uma nomeação ou designação para cargo internacional que não fosse sujeita a sufrágio.
Veremos!”
LNT
partilho muitos dos seus pensamentos, sobre o que nos rodeia e da manifesta hopocresia de muitos politicos que nos rodeiam.
é demasiado penoso viver nesta sociedade, se não mesmo dizer, nesta ditadura democratica.
fico diariamente preplexo com o que vejo e oiço dos nossos ditos governantes que pouco ou fazem de bom para as nossas sociedades.
sinto-me indignado.
Obrigado por não se resignar.
FM