Um governo a sério estaria a: denunciar o caso nas instâncias europeias, pressionar a Holanda para fechar as condutas, chamar as empresas para lhes anunciar como as regras de contabilização de lucros passariam a ser diferentes. O nosso governo está a pensar como continuar a sangrar os cidadãos comuns e baixar os impostos para as empresas.
Comecemos por três aspectos da democracia.
O primeiro é fácil: a maioria manda. Isto é o que a maior parte das pessoas entende por democracia.
O segundo é: a maioria muda. Sem ele a democracia não é sustentável. O primeiro princípio, se entregue a si mesmo, faria com que a maioria de hoje esmagasse a minoria que poderia muito bem tornar-se na maioria de amanhã. Para preservar este princípio de que a maioria muda, de que a cultura é fluida e de que as pessoas não têm sempre as mesmas ideias, gostos e vontades, a democracia baseia-se no estado de direito e na sua proteção das liberdades civis e políticas.
O terceiro aspecto é o do governo para a maioria. O seu elemento essencial está no aprovisionamento e alocação de recursos para que toda a gente possa participar da vida social, buscar a sua realização pessoal, e tentar fazer florescer o seu talento, vocação e potencial. Essa condição foi e é possível. O seu melhor exemplo é, provavelmente, o do “estado social” em que todos os países europeus se tornaram, ou tentaram tornar, durante o século XX. Esse estado social implica segurança na saúde, igual para todos, na medida das possibilidades técnicas e dos recursos disponíveis. Implica acesso à educação de forma a combater ativamente as desigualdades sociais. E implica muito mais coisas, do jardim ao parque natural, da biblioteca ao centro de investigação, da rua pedonal ao acesso para deficientes.
Com o passar do tempo, esta terceira dimensão social tornou-se o alicerce da democracia de tipo europeu. Onde antes ela faltava, havia desespero e instabilidade — mesmo em países ricos, poderosos e aparentemente civilizados. E hoje, é pela destruição desta dimensão social que pode começar a desfazer-se — que já está a desfazer-se — a democracia de tipo europeu.
Tendo isto em conta pode entender-se melhor a gravidade da notícia mais grave no Portugal atual: a de que as maiores empresas portuguesas transferem 30 mil milhões de euros anuais para a Holanda, a vastíssima maioria dos quais através de “instituições financeiras especiais”. Ou seja, as nossas empresas usam canais semelhantes aos que servem para a lavagem de dinheiro criminoso, de forma a poderem reciclar o dinheiro dos seus lucros e quase não pagar impostos deles. A prática é de tal forma recorrente que, em plena crise, Portugal é já o maior investidor direto estrangeiro na economia holandesa, e a Holanda na nossa, reproduzindo entre Holanda e Portugal a mesma relação que havia entre Chipre e os oligarcas russos — o “investimento” é só de nome, pois o que se passa é dinheiro a ir e voltar dos mesmos e para os mesmos bolsos.
Já escrevi aqui como Portugal viu serem transferidos 78 mil milhões de euros entre o resgate grego em abril de 2010, e o nosso, em abril de 2011 — um montante equivalente ao que nos foi depois emprestado. E agora vemos como, no tempo em que os portugueses são sangrados em impostos e cortes, e em que mil milhões de euros bastam para uma crise político-constitucional, as nossas maiores empresas fogem com trinta vezes mais dinheiro para a Holanda.
Um governo a sério estaria a: denunciar o caso nas instâncias europeias, pressionar a Holanda para fechar as condutas, chamar as empresas para lhes anunciar como as regras de contabilização de lucros passariam a ser diferentes. O nosso governo está a pensar como continuar a sangrar os cidadãos comuns e baixar os impostos para as empresas.
CORREÇÃO: a Holanda é o maior destino de investimento direto estrangeiro [IDE] português, e Portugal o maior destino de IDE da Holanda, mas não o maior originador de IDE na Holanda, como erroneamente escrevi. Isto não altera o sentido nem a urgência do que ficou escrito nessa crónica: em plena crise, as empresas portuguesas transferem 30 mil milhões de euros anuais para a Holanda, dos quais apenas 500 milhões em trocas comerciais reais, e o enorme resto através de “instituições financeiras especiais” que lhes servem para não pagar impostos dos lucros obtidos em Portugal.
(Crónica publicada no jornal Público em 16 de Setembro de 2013)