(escrito para o 10º aniversário do Jornal de Negócios, onde me pediram um texto escrito a partir do futuro)
Há dez anos, decidimos não estar no negócio da adivinhação para estar no de fazer as coisas acontecer. Em Portugal e na Europa, essa não foi uma decisão conjunta de um movimento unificado, mas uma tendência geral feita de muitas decisões individuais, influenciadas pelo que se estava a passar no resto do mundo. De repente, o espaço para a democracia estava a estreitar-se e a única maneira de salvar a democracia era empenharmo-nos em ampliá-la.
Bandeiras com o símbolo “2014≠1914” começaram a aparecer nas manifestações europeias. Eram uma exigência de que o ano de 2014 não fosse como o de 1914, ou seja, a primeira vez que os líderes europeus tinham ido para uma Guerra Mundial sem entenderem muito bem porquê mas sem o conseguirem evitar.
Uma rede que juntava universidades e jornais (incluindo o Jornal de Negócios) organizou debates em todos os países da União com os candidatos à presidência da Comissão Europeia. Pessoas comuns exigiam respostas e explicações, os candidatos prometiam e comprometiam-se. Aquelas eleições de 2014, cujo grande tema foi “austeridade: sim ou não?”, acabaram sendo as primeiras em que os europeus tiveram a sensação de escolher um “executivo da União” — um processo que continua a desenvolver-se hoje.
Em 2016 foram os portugueses a surpreender os outros europeus. Em vez de aceitarem serem representados no Conselho da UE por embaixadores (“negócios europeus não são negócios estrangeiros”) decidiram passar a eleger os dois representantes nacionais na mais importante instituição legislativa da União, que pouco tempo antes era quase desconhecida. No restantes países, o exemplo português intrigou os governos e entusiasmou os cidadãos (“¿Por qué coño pueden los portugueses y nosotros no?”, dizia-se em Espanha). Hoje é banal, já praticado por uma maioria de países, e vai entrar na próxima revisão dos tratados. O Conselho é hoje como um senado, cujas reuniões são abertas e cujos resultados são depois apresentados pelos “conselheiros” eleitos junto dos governos e parlamentos nacionais.
Essa novidade portuguesa foi apenas um ponto do grande esforço de democratização conhecido pelo nome de “Memorando de Desenvolvimento”, que foi debatido em academias, associações e assembleias de todo o país durante mais de um ano. Na deliberação final, era um documento extenso, com ideias sobre tudo, desde a economia até à educação, da saúde à administração pública. Elementos hoje tão conhecidos como a realização de primárias abertas nos partidos, que possibilitaram governos e parlamentos menos dependentes do taticismo partidário, vêm desse tempo.
Hoje nem toda a gente se revê no que foi conseguido — um esforço semelhante ao do progressismo americano de cem anos antes, ou do movimento cartista britânico antes disso. O impulso inicial perdeu-se um pouco e não deixou de haver frustrações. Mas elas só têm significado se não compararmos com o que poderia ter acontecido — ou melhor, com o que efetivamente aconteceu.
Porque — chegou a hora de vos revelar o segredo deste texto — tudo o que está para trás é mentira. O que de facto aconteceu entre 2013 e 2023 foi muito diferente — para pior. Na verdade, a crise financeira e económica redundou numa crise social e política. Ao colapso dos direitos fundamentais e do estado de direito seguiram-se os regimes do “maioritarismo”, um género híbrido entre a democracia e a ditadura. Mas mesmo esses falharam e os seus líderes buscaram o conflito para ocultar as suas responsabilidades. Os anos de 2014 em diante foram bem mais parecidos com o de 1914 e seguintes do que poderíamos imaginar. Muitos europeus buscaram o exílio e é de lá que vos chega esta carta.
Esta é a história que nos aconteceu. Espero que a vossa história venha a ser mais como aquela que desejámos.
(Texto publicado no Jornal de Negócios em 27 de Junho de 2013)
5 thoughts to “Uma carta de 2023”
Também, hoje, 1o anos de vida do Jornal de Negócios no mesmo jornal, um TEXTO de um JORNALISTA:
“Há dez anos já íamos todos morrer. Há dez anos já tínhamos pântano político e tanga no Estado. Há dez anos as reformas já eram todas para já e acabavam sendo nunca. Há dez anos as mesmas pessoas de hoje enchiam a boca de feitos e esvaziavam a mão de defeitos. Há dez anos já havia todas as mentiras, todos os mentirosos e todos a quem mentiam. Há dez anos já havia interesses, lóbis, corrupção, desigualdades, pobreza, proteccionismo, impunidade, compadrio, desesperança, défice, dívida, partidos políticos e políticos partidos.
Há dez anos Portugal já era o que ainda era. E já havia génio. Inquietação. Vontade contra a moinha. Insatisfação com a insatisfação. E já havia zanga, fúria, urros, hurras. A sensação frequente de que estamos sempre a escrever o mesmo editorial porque nada muda. A alegria rara de que a esperança pode mesmo ser inventada. A constatação final de que dez anos não é nada e foi tanto.
Em cinco Governos, apenas um cumpriu a legislatura. Houve maioria absolutas, relativas, coligações, dissoluções, escolhas sem eleições. As retomas nunca chegaram, o défice foi sempre manipulado, a dívida foi sempre escondida, a competitividade foi fraca, a economia foi fraca, a carne foi fraca. Os negócios foram fortes. Privatizações da PT, EDP, Galp, REN, Portucel, ANA. O maior negócio de sempre, a impensável oferta da Sonae para comprar a PT, num ano em que o país pensava que era rico, quando também o BCP quis comprar o BPI, duas OPA hostis falhadas com consequências tão diferentes. A “golden share”. A ruína do BCP, assistida por uma CGD infamemente politizada, no caso empresarial mais sujo de que há memória, em que até fotografias íntimas comprometedoras de pessoas envolvidas nos foram propostas (e por nós recusadas). Os assassinatos de carácter com fugas de informação selectivas em violação do segredo de justiça. A vergonha manipuladora das escutas. Espionagem. Os casos de promiscuidade entre empresas e política: o Furacão, o Mensalão, o Face Oculta, o Polvo, o Monte Branco. O escândalo do BPN. Do BPP. As PPP, os swaps, os estádios, as estradas, o aeroporto, o TGV. Mas também a salvação de impérios, como a Jerónimo Martins. O sucesso da Renova, da Bial, da Frulact, do banco Big, da Portucel, da Mota-Engil, da Sovena, da Autoeuropa, de milhares de filiais, de fornecedores de multinacionais, de grandes pequenas empresas desconhecidas. E a intervenção externa. A austeridade. O protectorado. A crise financeira. A crise económica. A crise social. O desemprego. A geração sem respostas, sem propostas, sem apostas, a geração sem nada.
A Europa afunda-se em resgates, o euro claudica. Durão mudou de nome para Barroso. Aparece Obama. Esmaece Mandela. O mundo sacode-se, com a revolta de uma larga região do hemisfério sul pobre mas emergente contra outra larga região do hemisfério norte rico mas decadente. O mundo ocidental atolado em dívidas. O mundo oriental a tornar-se potência. Uma demografia explosiva e desequilibrada. Centenas de milhões de seres humanos a sair da pobreza. A exigirem mais do seu sistema político. A circularem livremente em redes sociais. Primavera Árabe. África em crescimento astral.
Nestes dez primeiros anos do Negócios como jornal diário os dias foram mais que notícia. Foram um pentagrama de uma era em mudança, com as democracias, o capitalismo, o liberalismo, o sistema financeiro, os equilíbrios mundiais, a Europa em solavanco. É a frustração de ver um país a afundar-se na carência do futuro. É a paixão de noticiar um tempo histórico. Há dez anos Portugal já era Portugal. Há dez anos já íamos todos viver. Já queríamos partir tudo, já queríamos construir tudo, já queríamos desistir, insistir, resistir, amar, desesperar, esperar, não esperar. Perdemos muito. Mas também ganhámos muito na década perdida. Às vezes parece que a história nos desfaz. Mas somos nós quem faz a história. Jornalistas, leitores, incluídos, excluídos, temerários, amotinados, nós somos os escritores da História. “Que há-de ser de nós?”, perguntava Sérgio Godinho. A resposta é nossa. Porque mesmo quando a notícia é sobre outras gentes, políticos, empresários, polícias, ladrões, sucessos, fracassos, geografias e povos distantes, a notícia somos sempre nós.”
O futuro vai ser o resultado da destruição sistematizada da economia pelos burocratas da UE !, qualquer que ele seja !
Alexandre
SEM DÚVIDA:
Na verdade, a crise financeira e económica redundou numa crise social e política. Ao colapso dos direitos fundamentais e do estado de direito seguiram-se os regimes do “maioritarismo”, um género híbrido entre a democracia e a ditadura. Mas mesmo esses falharam e os seus líderes buscaram o conflito para ocultar as suas responsabilidades. Os anos de 2014 em diante foram bem mais parecidos com o de 1914 e seguintes do que poderíamos imaginar. Muitos europeus buscaram o exílio e é de lá que vos chega esta carta.
Esta é a história que nos aconteceu
Rui o momento é muito mau. Que fazer com tanto poltico tão incapaz. O Brasileiro Rubens Ricupero dizia em Serralves na passada 5ª feira que a Europa está a ser gerida por polticos de 3ª cvategoria!!!!!!!!!
Que acha? e que fazer????????????????
abraço
augusto
Como haver novos politicos que facçam verdeira poltica e não mais do que temos tido?
Vão buscar os petralhas ao Brasil, esses sim são a nata da
esquerda!
Alexandre