Pois não foi o estado social que debilitou o nosso corpo coletivo. Foi o conflito de interesses entre a finança privada e a governação pública. Essa é a verdadeira doença — e está a matar-nos.
Nos meados do século XIX, o médico Carl Reinhold August Wunderlich conseguiu provar duas coisas: que a temperatura normal do corpo humano é de cerca de 37º e, mais importante, que a febre é um sintoma e não uma doença. Até então, a obsessão em acabar com a febre sem tratar das suas causas acabava muitas vezes por matar o paciente.
Saltamos mais de um século até quarta-feira passada e temos uma crónica de João Miguel Tavares (olá, vizinho!) desafiando-me para um pingue-pongue à volta do caso dos contratos tóxicos que várias empresas públicas negociaram com bancos internacionais. As perdas potenciais até agora serão de cerca de três mil milhões de euros e, segundo dizia ontem este jornal, o estado ainda só conseguiu renegociar 14 dos 56 produtos tóxicos identificados, com pouco sucesso.
Na sua crónica “Os alhos e os bugalhos”, João Miguel Tavares concorda com o diagnóstico que eu fizera noutra crónica chamada “Os filhos da permuta”. Escreve ele que “o Rui tem toda a razão quando aponta o dedo aos [swaps] no nascimento da crise global… à imprudência de permitir a proliferação de uma miríade de produtos financeiros com uma tal complexidade… as críticas que são feitas aos desvarios do capitalismo, à ganância dos bancos ou à vergonha das offshores são mais do que justas”. Qual é então o diferendo? Segundo o Tavares do outro lado da rua, “esquerda e direita nem sequer se entendem quanto à doença, quanto mais à cura”, pois “ainda que as contas do Metro do Porto fossem tão cristalinas como as ribeiras do Gerês, ainda assim Portugal continuaria a ser incapaz de pagar as suas contas”.
Aqui chegamos a um velho problema, que vou resumir desta forma: a direita está estruturalmente convencida de que a esquerda não sabe fazer contas. O João Miguel exemplifica com o número do défice de 2012 (8,5 mil milhões de euros) para dizer que, mesmo que o buraco do BPN inexistisse, mal daria para pagar o défice desse ano, quanto mais de todos os outros.
Vamos ser generosos e atirar para o défice de 2010, que foi maior: 15 mil milhões. Enorme, não? Mas Portugal perdeu nesse ano, em matéria não taxada da sua economia paralela, 12 mil milhões de euros. Também nesse ano, a partir do resgate grego, os bancos portugueses registaram assimetrias derivadas de transferências de capitais que foram de 78 mil milhões de euros — o equivalente ao nosso resgate. O primeiro número é estrutural, o segundo recorrente quando o euro está em dúvida, e ainda lhes poderíamos acrescentar o aumento proporcional da dívida como função da contração da economia. Estes três fatores, para lá de swaps e BPNs, dão-nos pistas sobre a verdadeira doença.
O argumento implícito na minha crónica era que fazer cortes no “estado social” — por exemplo, aumentado as tarifas dos transportes públicos — iria fazer mais mal do que bem, por se esquecer (como lembra bem a convocatória do Congresso Democrático das Alternativas para a sua conferência do próximo 11 de maio) que “o estado social não é gordura, é músculo”.
Pois não foi o estado social que debilitou o nosso corpo coletivo. Foi o conflito de interesses entre a finança privada e a governação pública. Essa é a verdadeira doença — e está a matar-nos.
(A fechar, mais um sintoma, e grave: a resposta de Vítor Gaspar a Ana Drago, numa comissão parlamentar, dizendo que “não fui eleito coisíssima nenhuma”, esquecendo as suas obrigações e até decoro como membro de um governo de um país democrático, é por si só razão para demissão imediata do ministro.)
(Crónica publicada no jornal Público em 1 de Maio de 2013)