E nós ali, descendo a Avenida da Liberdade, centenas de milhares de pessoas exauridas. Somos o povo esquecido. O povo a quem roubaram o futuro. O povo abandonado pelo seu governo.
Estávamos no cimo da Avenida, preparados para um ato português desta tragédia europeia.
Estamos agora vendo acontecer aquilo que em geral pensávamos só ler nos livros. Um continente perdido, dividido sobre si mesmo, injustiçando gerações a favor das suas crenças obsoletas, deixando sacrificar povos inteiros.
E nós ali, descendo a Avenida da Liberdade, centenas de milhares de pessoas exauridas. Somos o povo esquecido. O povo a quem roubaram o futuro. O povo abandonado pelo seu governo.
Quase não há palavras de ordem; gritamos em silêncio. Descendo a Avenida da Liberdade, agrilhoados. Juntos, mas sozinhos com os nossos pensamentos.
Pensamos: a consequência de aqui estarmos, fazendo alguma coisa, é pelo menos fazer alguma coisa. Quando tudo à nossa volta — estes governos, em Portugal e na Europa, esta degradação do espaço público — nos poderia levar a renunciar, decidimos: não temos direito a renunciar.
A multidão é tão grande que levamos mais de duas horas para chegar ao Rossio. A Rua do Ouro não consegue levar-nos a todos e há quem se disperse pela Rua Augusta, pela Rua da Prata, para conseguir chegar à Praça do Comércio a tempo de cantar o hino da nossa democracia. Já chegou a hora e as ruas ainda não acabaram de desaguar gente na praça. As primeiras estrofes ecoam por debaixo do Arco Triunfal.
E nós paramos ali, cantando a Grândola, esperando o seu sortilégio.
Nós, famintos de bom governo, cantando “terra da fraternidade”.
Nós, famintos de democracia, cantando “o povo é quem mais ordena”.
Nós, sedentos de cidadania, cantando “dentro de ti ó cidade”.
Voltamos ao silêncio. E começamos a despedir-nos uns dos outros.
Vamos deixando vazia a praça que há 500 anos define o poder político português, desde que Dom Manuel ali decidiu receber a embaixada da República de Veneza para lhes explicar, singelamente, que o mundo tinha mudado. Ali Pombal inaugurou aquela Estátua Equestre, encenando-a como o triunfo das luzes sobre a ignorância, o fanatismo e a superstição. Foi ali que o rei Dom Carlos foi morto por republicanos. Foi por ali que Salgueiro Maia entrou com os chaimites para acabar com “o estado a que chegámos”.
Foi ali que definimos cada um dos nossos regimes.
E agora? A noite cai, olho em torno: o Terreiro do Paço está transformado em praça da alimentação, com as mais foleiras cadeias de restaurantes ocupando arrogantemente o espaço. Na praça imperial onde ainda agora imperou o povo, impera agora só o mau gosto e a falta de qualquer noção da comunidade política. Não foi a troika que decidiu este aviltamento. Isto foi decidido por um governo da República, sem oposição de qualquer político nacional. Faz sentido: é a definição de um país de 900 anos, vendido como fatias de pizza como num centro comercial. Ninguém imaginaria o Kremlin, São Pedro do Vaticano ou a Praça dos Três Poderes em Brasília submetidas a esta indignidade. Puseram uma discoteca no torreão da biblioteca, onde em 1775 o terramoto destruiu manuscritos únicos da civilização europeia.
Nem o romancista mais delirante se lembraria desta utopia negra, nem a imaginação mais depressiva conseguiria descrever melhor o estado a que chegámos.
(Crónica publicada no jornal Público em 04 de Março de 2013)
One thought to “Nós, famintos”
“O silêncio dos inocentes”, as suas vozes murmuradas ou gritadas em revolta, poderão atingir os ouvidos dos poderosos, mas não magoam as suas consciências, embotadas pela lama dos interesses e pela mesquinhês da subserviência. Eles (os poderosos) rastejam como répteis, perante a arrogância dos que se dizem seus tutores (troikas e quejandos). Em atitudes de humilhação, dobrando a cervis perante o humilhador, o humilhado, julgando não ser observado, lança o “agradecemos muito”, em nome de um povo que lhe não deu procuração.
Não permitamos que nos humilhem. Humildade pode ser uma atitude nobre, humilhação é um acto desprezível.