Perante a falta de resposta dos responsáveis, uma cornucópia de informação essencial para a nossa história apanha pó nos armazéns quando poderia estar em livre acesso. É este o problema: incúria, falta de continuidade editorial e de memória institucional.
No início do século XIX nasceu em Lisboa um homem chamado Inocêncio Francisco da Silva, um simples amanuense que tinha uma ambição simples: reunir num dicionário todas as informações sobre todos os autores de língua portuguesa. Quando morreu, em 1876, a sua missão foi continuada por um simples tipógrafo chamado Pedro Venceslau de Brito Aranha. O Dicionário Bibliográfico Português, muitas vezes chamado apenas por “o Inocêncio”, ficou um autêntico monumento para a história da cultura, não só em Portugal e no Brasil, mas também para a Ásia e a África lusófonas. Os seus 23 volumes tornaram-se raros e caros e, mesmo quando reeditados pela Imprensa Nacional, difíceis de adquirir e guardar pela maior parte das pessoas que deles teriam necessidade.
Nos fins do século XX conheci um grupo de gente a quem a Comissão dos Descobrimentos deu a tarefa de digitalizar, rever e recuperar para um simples CD-rom todo o Inocêncio, e para CDs da mesma coleção toda a Bibliotheca Luzitana (um antecessor do século XVIII), todo o Gil Vicente, as “Décadas da Ásia” de João de Barros, e mais uma série de fontes cruciais da história dos portugueses na Índia, no Japão, e um pouco por todo o mundo. Os CDs resultantes eram baratos e, à altura, funcionavam em quase qualquer computador.
Em inícios do século XXI o governo Durão Barroso decidiu fechar a Comissão dos Descobrimentos descurando completamente — e contra vários avisos — qualquer continuidade editorial destes projetos. A maior parte do material ficou sabe-se lá em que armazém, e os protótipos prontos a serem editados, cujos gastos já tinham sido pagos, por editar ficaram, por incúria da tutela. Nessa situação ficaram uns certos ficheiros com as Obras Completas do Padre António Vieira.
Entretanto, chegou recentemente a notícia de que Pedro Santana Lopes, agora provedor da Santa Casa da Misericórdia, decidiu aplicar 500 mil euros na edição, nem mais nem menos, de umas Obras Completas do Padre António Vieira.
Qual é, e qual não é, o meu problema com isto? Começo por qual não é o problema: a um autor como Vieira regressa-se sempre, e é bom que haja dele mais do que uma edição; além disso, um dos coordenadores da nova edição é o Professor Pedro Calafate, cuja obra tenho em grande apreço, e que dá todas as garantias de qualidade a este projeto. Para esta nova edição houve um regresso às fontes, novas leituras paleográficas, e é possível que até apareçam inéditos. Que mil Vieiras floresçam!
O problema — e sério — é que durante todos estes anos as pessoas ligadas ao projeto inicial foram alertando, sem sucesso, sucessivos governos e respetivos ministros ou secretários da Cultura para a necessidade de editar os textos que já tinham sido pagos, e foram avisando ainda para o facto de os CD-roms dos anos 90 já não se poderem usar hoje. Bastaria o estado ceder os direitos de uso para que a Biblioteca Nacional, por exemplo, pudesse por tudo aquilo em acesso gratuito na rede. O país gastaria zero, mas ganharia muito.
Perante a falta de resposta dos responsáveis, uma cornucópia de informação essencial para a nossa história apanha pó nos armazéns quando poderia estar em livre acesso. É este o problema: incúria, falta de continuidade editorial e de memória institucional. Ah, e quanto ao Inocêncio, parece que emigrou: quem quiser lê-lo pode encontrar umas digitalizações pouco práticas e inferiores ao que já tinha sido feito… no site da Universidade de São Paulo.