Nos últimos dias, a maioria na Assembleia da República fez pior: esvaziou o seu próprio mandato.
As instituições não acabam no momento em que desaparecem. Vão acabando à medida em que as pessoas se forem convencendo que elas são inúteis. Esta ideia poderia bem ser considerada pelo nosso parlamento.
Ontem, a maioria na Assembleia da República aprovou um orçamento irrealista — baseado em previsões económicas nas quais ninguém acredita —, injusto — punindo especialmente os trabalhadores, os pensionistas, o cidadão comum e, em particular, os mais vulneráveis —, e iníquo — estabelecendo objetivos de desvalorização interna e, em última análise, empobrecimento, que a maioria dos portugueses recusa.
Mas, nos últimos dias, a maioria na Assembleia da República fez pior: esvaziou o seu próprio mandato.
Em primeiro lugar, dezoito deputados do PSD decidiram apresentar uma declaração de voto na qual exprimiam o seu desacordo em relação às medidas fiscais do governo. Esta era uma atitude que, do seu ponto de vista, era perfeitamente adequada: os deputados do partido maioritário no governo não faziam perigar o que provavelmente considerarão ser prioritário, mas apesar de tudo descarregariam a sua consciência. Pois bem, nem isso o autoritarismo imanente da política portuguesa permitiu: o aparelho do PSD logo encontrou maneira de esvaziar o mandato daqueles deputados. Mas evidentemente, os deputados são também os culpados: nada, a não ser a pusilanimidade, os obrigaria a aceitar este enxovalho.
Não acredito em deputados que são supostos defender o país contra os interesses ilegítimos e a corrupção, mas que cedem à mínima ameaça de não fazerem parte das próximas listas eleitorais.
Após a vergonha da declaração de voto que antes de o ser já não o era, e que mais uma vez mancha o PSD, tivemos agora a reação ao voto contra de Rui Barreto, que mancha irremediavelmente o CDS.
Rui Barreto, recorde-se, é o deputado do CDS Madeira que é contra este Orçamento de Estado e que, por bizarro que isso possa parecer neste sistema partidário, decidiu votar contra o orçamento. Poderíamos considerar que, naturalmente, o seu voto contra levaria a uma alteração do espaço político para este deputado dentro do seu partido (eventualmente uma redução do espaço político, ou talvez não) a ser julgada em tempo pelos seus correligionários militantes do CDS.
Não foi isso que aconteceu. Em vez disso, o líder do grupo parlamentar, Nuno Magalhães, declarou imediatamente que o deputado seria alvo de um processo disciplinar por ter furado a disciplina de voto.
Só há um detalhe: não há disciplina de voto. Nem pode haver, pois o artigo 155 da Constituição diz que os deputados devem exercer o seu mandato em liberdade. É evidentemente inconstitucional punir um deputado por exercer o mandato como manda a Constituição. Partidos como o CDS fingem não entender a essência da democracia representativa, assente na independência do mandato. Se tiverem coragem, mudem a constituição e passem a exercer o poder legislativo em conferência de líderes. Bastaria meia-dúzia de deputados com modulação de votos.
Agora a bola passa o Presidente da República. Também ele precisa de considerar este pensamento: as instituições não acabam no momento em que desaparecem, mas vão acabando à medida que as pessoas se convencem da sua inutilidade.
(Crónica publicada no jornal Público no dia 26 de Novembro de 2012)
6 thoughts to “Da caducidade”
caro,
acho que cometes um erro nessa análise: a constituição defende a independência do voto do deputado. mas isto não invalida a possibilidade de existência de um partido que adopte como regra interna uma disciplina de voto. todos somos livre para fazer parte dum partido assim, mas devemos aceitar as suas regras, mesmo que elas possam ir contra o que é defendido pela constituição. se não as queremos aceitar, não entramos (ou saímos) do partido.
LOL
Isso é como uma loja q escolha cortar a mão de alguém q seja apanhado a roubar, mesmo q as leis do país n o permitam.
A constituição impede os partidos de terem essa regra, mesmo q a quisessem.
Rui Tavares
Ouvi hoje, sábado, na TSF, uma entrevista sua entre as 10 e as 11 horas, que achei determinante para estar amanhã na Sociedade de Geografia para me dar melhor conta do Projeto Ulisses. Fiquei não só interessado em seguir, como entusiasmado com o projeto, porque vem de encontro àquilo que achava que fazia falta. Resultado: fui para o blog e para o Face e desatei a dar nota nos meus contactos:
http://rendarroios.blogspot.pt/2012/12/projeto-ulisses-ulysses-project-uma.html
Faltou porém deixar um link no post que fiz da sua entrevista, por não me parecer que a TSF o disponibiliza, ou então por não ser eu a saber em que programa foi transmitido e não chegar lá através da pesquisa. Se conseguir ter da TSF o link para ela agradeço o favor de deixar por aqui em resposta, porque a acho importante.
Saudações.
mais uma velha glória da societé de geographie
o velho nonagenário da estação de melhoramento de plantes nunca mais voltou
virtualmente caducado?
tudo tem seu tempo
o tempo de orçamentos realistas passou com joão franco e hintze ribeiro
orçamentos irrealistas de afonso costa ao costa da CML e do próximo governo inseguro com seguro ou sem
ou de joão chagas a joão soares com bilhete de volta para a prole com o mesmo nome de mário a sila é o surrealismo que bate o irrealismo
agente quer mesmo é inflação de 20 e 30% décadas a fio…
e esc udos ou can udos ou ses tércios
en papel de monopólio de impressora agente vinces…
in hoc…et caetera in caetés cê pecebe boss?
@Migs
Nao sou jurista, mas pela parca informaçao que disponho sobre leis e regulamentos (e que pode estar incorrecta, admito) parece-me que existe uma espécie de hierarquia destes. Os regulamentos internos de organizaçoes nao podem ir contra leis, que por sua vez nao podem ir contra a Constituiçao (ela mesma uma Lei).
Dessa forma, um partido nao pode simplesmente (será que se pode acrescentar ‘impunemente’?) estabelecer um regulamento interno que viole a Lei do país onde se encontra. Claro que podem haver países sedeados em lugares como a China ou a Arábia Saudita, onde há uma tradiçao de liberdade de opiniao muito [pouco] saudável, mas nesse caso os seus deputados nao deveriam ter assento em S. Bento.
Quando acima digo “Claro que podem haver países sedeados” quero dizer partidos. Pelo erro as minhas desculpas.