Há mais ou menos dezoito anos, um editorial deste jornal teve a ideia de chamar “geração rasca” aos jovens que na altura tinham mais ou menos dezoito anos. A geração — essa geração, a minha — nunca mais conseguiu esquecer. Com toda a ambiguidade, levámos o nome a peito: ficámos ofendidos com ele, um pouco envergonhados sim, muito irritados também, mas fizémo-lo nosso sobretudo, tentando dar-lhe a volta (a “geração à rasca”) às vezes. Recusámo-nos sempre, sabe-se lá porquê — porque era injusto, digo eu —, a largá-lo.
Que o nome era injusto foi-se vendo depois. Na verdade, esta geração, que tem agora o dobro da idade, não foi absolutamente nada rasca. Pelo contrário, espanta-nos a nós — e a quem quiser observar — o quão cordatos fomos. Passámos a segunda metade das nossas vidas com esse ferrão do vexame em manifesto silêncio. Ouvimos até à náusea que éramos a “terra queimada” do sistema de ensino — chegámos a repeti-lo nós, por reflexo condicionado — até muito recentemente apenas se ter começado a reconhcer que afinal somos a “geração mais bem preparada” de sempre no país. O que pode não ser difícil, mas não deixa de ser verdade. E nestes anos todos, de forma passiva, cabisbaixa e rotineira lá fomos aceitando mais um estágio, mais um subemprego, mais uma caderneta de recibos verdes, mais um mês no call center, ou — pior ainda — um telefonema do call center a dizer que afinal não precisamos de ir neste mês nem nos seguintes.
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Até que no outro dia, no Coliseu do Porto, a banda do momento, que leva um nome de mocinha de outros tempos — Deolinda — tocou em estreia absoluta uma música cujos versos começam, de mansinho, “sou da geração / sem remuneração”. Às palavras, claras e bem articuladas, o público que nunca as tinha ouvido reagiu primeiro com uma ligeira gargalhada. A música é também ela falsamente branda e delicada; em três minutos somente veremos que fomos enganados pelas aparências e que ela tem dentro uma raiva cristalina.
As rimas prosaicas, que parecem piadas e na verdade são facas — “isto está mau e vai continuar / já é uma sorte poder estagiar” — vão entrando na carne do público a pouco e pouco. Aqueles que lá estavam e tinham aquela idade — “a geração do vou-queixar-me-pra-quê / há bem pior do que eu na TV” — reconheceram-se ao espelho.
Irónica, muito muito cansada e lamentosa, a vocalista vai repetindo sobre o repenicado das guitarras, “que parva que eu sou”, “que parva que eu sou”. Insultando-se para não insultar o mundo porque afinal — a coisa menos rasca do mundo — somos bem educadinhos. Só quando a rede já está lançada a canção se diz, não vá alguém levar a mal, numa sugestão apenas:
“…fico a pensar, que mundo tão parvo / onde para ser escravo / é preciso estudar.”
Neste momento, o público estava pasmado. Na última estrofe — “sou da geração do já-não-posso-mais / que esta situação dura há tempo demais” — estava conquistado. No fim da canção aplaudiu de pé. Uns estavam arrepiados, outros comovidos. A cantora levantou os dois braços, numa espécie de alívio, como quem finalmente disse uma coisa que estava entalada. Vão ver: alguém filmou, pôs na internet, partilhou; nasceu um fenómeno. A geração finalmente pôs um nome a si mesma.
Pois é, Deolinda: que parvos que somos. Que parvos que fomos. Que parvos que temos sido. Mas ninguém pode ser parvo tanto tempo assim. Vê lá: se mudássemos aqui uma letra, e substituíssemos ali por outra — voilà! — ainda iríamos a tempo de ser a geração brava, não era?
16 thoughts to “A geração parva”
Caro Rui, que esperança tem esta “geração rasca”, como lhe terá
chamado o Vicente Jorge Silva, na altura? E é desta tomada de consciência de que “ninguém pode ser parvo tanto tempo assim” que poderá (re)nascer o desejo de mudar este absurdo rumo, porque não acredito que “sempre foi assim”, como diz a canção do Sérgio Godinh0, “escolhe…, escolhe meu menino”, e “luta, luta meu amor, meu dezreizinhos de gente”…
Um artigo excelente, caro Rui!
Parabéns Rui,
Também eu sou desta geração e reconhecendo que tem alguns parvos (como todas as gerações) acho e tenho sempre acusado a injustiça da expressão “geração rasca”.
Provou-se (e alguns de nos provaram) que a geração realmente rasca foi a que nos colocou esse nome, está aí para quem quer ver: nas noticias que lemos, nos ordenados que pagam, nos contratos de trabalho que não fazem, nas oportunidades que não dão.
Chegarmos aos trinta foi um ato de coragem, fazer melhor é uma responsabilidade, um dever, mas principalmente um direito que nos foi dado pela verdadeira “geração rasca”
Bom artigo. Sim … tratados como parvos. Em certos aspectos até somos, cada geração tem os seus quês, mas os resultados foram bastante surpreendentes para o que que certa enfatuação bolorenta queria fazer crer.
Caro Rui Tavares
Parvo é quem responde assim:
RESPOSTA DE DEPUTADO:
«No entanto, se o senhor estivesse no regime alargado (e são dezenas e dezenas de milhar), seguramente pensaria de outra maneira, porque veria a sua taxa reduzida, mantendo a protecção social na doença.
Por outro lado, sabe bem que o aumento da taxa corresponde à inclusão da protecção social na doença. É claro que de doença… só nos lembramos quando ocorre. Quanto ao mais, leis perfeitas, que contentem a todos, só num mundo ideal.»
Leis perfeitas que contentem a todos? Não, não é leis perfeitas que queremos, queremos é ouvidos abertos aos representados e… ethos. Que sentido faz ter representantes que se eregem contra os representados? Que sentido faz representantes acharem que licenciados e mestres com 20, 30, 40 ou 50 anos receberem 1000 € de rendimento a 11 meses, 900 € a 12, 700€ a 14, para no final só exangues de contribuição para a segurança social e IRS ficarem com 300 líquidos. E quando têm de pagar a moderadora do tendencialmente gratuito? E a taxa de esgotos? E as milhentas taxas que nos cobram em Portugal só por existirmos? É um país assim, viável?
Nem mesmo no mundo ideal do tendencialmente deputado Adão sem Eva!
Caro Rui,
poderás já te ter dado conta deste fenómeno também ele recente: http://www.facebook.com/event.php?eid=180447445325625
Há novas gerações a surgir que querem demonstrar que esta situação dura há tempo demais. Esta mobilização quer trazer todos juntos – todos os espectros políticos, religiosos, geracionais, etc. Os avanços que foram feitos no acesso à educação puseram a minha geração (tenho 25 anos) como a melhor preparada na história do País. Por isso, achamos que esta geração é um recurso que o País pode e deve aproveitar para nos levantarmos socialmente e economicamente. No entanto, a precariedade é cada vez mais presente e sabemos que ela se alimenta a si mesma. As taxas de desemprego juvenil são cada vez mais altas o que levanta uma série de questões para o futuro. Achamos que, enquanto jovens, temos ferramentas para ajudar o país e queremos mostrar-nos presentes para afirmar que podemos e queremos ser parte da solução.
Alguém disse: Geração Rasca, alguem diz: Geração à Rasca, alguem disse: Geração Nem Nem, eu direi para estes últimos daqui a alguns anos: Geração Sem, Sem, Sem…, sem emprego, sem trabalho, sem vontade de trabalhar, sem dinheiro, sem os pais a sustentá-los, sem, sem, sem…, vai ser o bom e o bonito.
As últimas eleições – não apenas as presidenciais – mostraram como as pessoas estão descrentes relativamente aos actuais políticos.
Não acredito que exista uma “geração parva”. Espero sim, que essa geração se pronuncie de outro modo – já que o não quis fazer nas eleições.
Espero que essa geração assuma protagonismo nos destinos do país. Espero muito que o faça como mais verdade, com mais carácter, com mais ética, com mais inteligência, como mais amor pelo bem comum… que é tudo o que falta aos políticos do presente. Força jovens!
A geração ficou conhecida por rasca porque houve um tipo ou dois que baixaram as calças e viraram o rabo para a assembleia… foi por isso.
Geração abortada…
já lá vão mais abortos que mortos na guerra colonial, ou grande guerra…
Essa é que é essa!
Estamos a ser abortados em adultos…
Oh, Rui! O que é que foi dizer?
Enquanto mentalmente tentava optar pelo adjectivo posposto ou anteposto: “geração brava” ou ” brava geração” – alternativa, esta última, que me parecia ecoar agradavelmente o modelo da “ínclita” – tentei investigar o que me sugeria, a este respeito, a “net”… E… Oh Rui! Então não é que me sai qualquer coisa como: “geração brava; consulte os resultados traduzidos em inglês para “the angry generation”…
Pois é…”brava” de “brava”, corajosa; “brava” de “brava”, zangada.
Brava de embravecida, brava de enraivecida.
Ai, esta Língua Portuguesa que é tão traiçoeira….
Ai, ai, depois de andar a tirar 20s no liceu por causa dos “numerus clausus” (já ninguém se lembra, pois não?), de se esfalfar em pós-graduações, mestrados, Ph.Ds, pós-Doc.s e cursos de especialização, a minha geração, eternamente brava, não tem já forças, está exangue, para se embravecer…
P.S. : Mas valeu a pena e não foi só para ler o JMF em “mea culpa” por achar que nos “espoliou”… (Devia querer dizer de editoriais melhores e mais equidistantes do que os que ele escrevia, em especial na sua última década como Director do “Público”.)
Eu só quero mostrar o meu profundo descontentamento para com o Protesto Geração à Rasca. E salientar no post do Rui isto: “de há uns dois anos a esta parte uma possibilidade destas vinha sendo preparada e que eles se mantinham inclusive em contacto com outros “agitadores encartados” de outros países precisamente para saberem como lidar ou mesmo criar oportunidades destas.”
Parece que as pessoas não atingem a gravidade deste tipo de acções irresponsáveis, vazias e superficiais. Irresponsáveis porque se demitem de qualquer efeito que a sua idiotice possa ter sobre a opinião pública.
Acho absolutamente de atrasados-mentais a ideia de descer a Avenida da Liberdade com este protesto. Irrita-me e enerva-me que os mentores deste protesto tenham ido para a televisão dizer baboseiras como se, por se armarem em inocentes, não estivessem conscientes do alcance mediático que têm as suas opiniões ocas que podem bem ser confundidas com as opiniões de todos nós, jovens.
Eu não me identifico em nada com as quatro caras do protesto, acho-os insonsos e acho que são mansos e complacentes com o que existe. E, dar a cara, como pretendem fazer, implica falarem bem mais do que aquilo que fizeram e expressarem a sua opinião de forma bem mais transparente. Qualquer idiota sabe que dar a cara não é literal. Mas claro, preferem continuar com o mesmo discurso enevoado que abafa tanto o conhecimento como a expressão, etc.
De resto basta aceder ao perfil deles no facebook para perceber o nível de organização, planeamento e pensamento efectivo e honesto que ali existe.
Enfim.
Quando digo “salientar no post do Rui” refiro-me ao post Egipto: é difícil fazer melhor.
E, mais uma vez, quando cito a forma como o Egipto terá planeado a sua revolução QUE MUITO ADMIRO pretendia fazê-lo para mostrar que em nada se assemelha a este protesto da Geração à Rasca.
Depois “este tipo de acções irresponsáveis” referem-se às tomadas pelos mentores e participantes do movimento Geração à Rasca.
Era assim que queria ter escrito mas precipitei-me e acabou por sair tudo confuso. Espero que com isto fique mais claro o meu pensamento.