Afinal, as eleições presidenciais provam que é um disparate a esquerda tentar entender-se?
Para António Vitorino, sim. Como disse logo na noite eleitoral, “às vezes, há plataformas que subtraem”, disse ele, referindo-se ao duplo apoio partidário — BE e PS — que Manuel Alegre teve.
Esta opinião fez logo escola, mas António Vitorino não está tão certo assim.Há cinco anos, o PS apresentou um candidato, o BE um candidato, e Cavaco Silva foi eleito à primeira volta. O que é mais, o candidato do PS teve quatorze por cento.
Em segundo lugar — e mais importante — mesmo que António Vitorino estivesse completamente certo valeria a pena lutar para que um dia ele viesse a estar errado.
Não poder a esquerda convergir é um péssimo vício nacional. Como qualquer vício, não desaparece de um momento para o outro. E enquanto dura impede-nos de ser um país normal e uma democracia em que da alternância nasça alternativa. Ora isso é um sinal de subdesenvolvimento, não só do país, mas sobretudo da própria esquerda — que continua a comportar-se como se devesse alguma coisa aos sectários que dentro de cada partido.
Dizem-me que o fosso entre a nossa esquerda — que não tem paralelo em mais nenhum país de que me lembre agora — vem dos tempos do PREC. Mais uma razão para acabar com ele. Por que diabo teremos nós de pagar tributo a um tal atavismo?
Desse passado a única coisa que sobra é um clima de ridícula intimidação ideológica para a qual só há uma resposta: não se deixar intimidar. Manuel Alegre arriscou para mudar esta mentalidade retrógrada que ainda prevalece em Portugal. António Vitorino não arriscou nada — como é seu hábito — e por isso agrada-lhe confirmar que nada mudou.
E enquanto assim for eu preferirei sempre os erros de Manuel Alegre aos acertos de António Vitorino.
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Na verdade, sem relembrar o contexto em que se deu esta eleição não há conclusões que não sejam confirmações de preconceitos antigos. A três dias de distâncias, vale a pena notar que nunca um presidente eleito esteve tão próximo de ser forçado a uma segunda volta. Nunca tivemos um presidente que não fosse reeleito, e temos tido presidentes reeleitos com 55, 60 e até 70 por cento dos votos. Cavaco não chegou aos 53%.
A isto devemos juntar uma crise terrível e piorando a cada dia; durante meses, o orçamento de austeridade foi sempre um embaraço para Manuel Alegre e para os dois partidos que o apoiavam (e curiosamente não o foi para Cavaco Silva, que o apadrinhou); os funcionários públicos viram os seus salários cortados três dias antes das eleições presidenciais.
Que quero dizer com isto? Que a aposta de Manuel Alegre e dos seus apoiantes foi, desde o início, uma espécie de remate do fundo do meio do campo. Desafiar um presidente num país em que o presidente nunca perdeu uma eleição; querer levá-lo à segunda volta num país onde nenhum presidente tinha tido menos de 55%; e tentar fazê-lo num momento em que a crise gerou desânimo no eleitorado. E, no entanto, apenas um terço dos votos nulos e brancos teria bastado para uma segunda volta na qual Manuel Alegre poderia ter tido — quanto? 30%, 40%? — e teria dado esperança às suas hostes contra um Cavaco Silva em dificuldades.
Não estou a fantasiar: eu perdi. Uma derrota é uma derrota e há sempre lições a tirar dela. Mas as lições são para aprendizagem mais do que para flagelação.
Publicado no Jornal Público no dia 27 de Janeiro de 2011
5 thoughts to “Solilóquio do perdedor”
Nestas contas de percentagens, haverá sempre que contar com os “eleitores-fantasma”, cujo número não tem parado de crescer – desta vez, atingindo uns espantosos 1.250.000, a que acrescem ainda as dezenas de milhares que não puderam votar.
Convinha também não esquecer que:
1. O Manuel Alegre (MA)fez tudo para manter as eleições presidenciais na agenda política durante os últimos cinco anos: ninguém aguenta tamanho ego.
2. O MA hostilizou sistematicamente o governo durante aquele período, e muito boa gente não lhe perdoa: conheço alguns eleitores de sempre do PS que votaram noutros candidatos e nunca votariam MA numa segunda volta. Valha a verdade, o MA não olhou a meios para se servir das causas popularuchas.
3. Uma coisa é o PS apoiar o candidato promovido pelo BE, outra é ser o BE apoiar o candidato do PS. O BE fez uma espertalhona jogada de antecipação e queimou um candidato possível, queimou quiçá outros candidatos possíveis.
4. O debate de MA com Cavaco Silva podia ter virado um pouco as coisas, mas MA demonstrou falta de preparação, foi para o debate sem saber o que é que queria tirar dele, demonstrou tudo menos ser um homem do leme.
Parece que o MA quer continuar no Conselho de Estado: só lhe fica bem, continuar a aconselhar o seu (dele) presidente.
Vitorino… Vitorino… Não sei o que hei-de pensar…
Quanto ao vício de a esquerda não se entender, concordo inteiramente: tem que desaparecer. A responsabilidade por essas “costas voltadas” é de todos… Recordar que o PCP na Constituinte votou contra os “direitos sociais” (porque, na perspectiva do seu materialismo dialéctico, deveriam ser direitos apenas “dos trabalhadores” e não de “todos”, para que, assim, se catalizasse uma mudança na “infra-estrutura” económica e se emancipasse o proletariado) e mais recentemente, na era Guterres, se absteve na votação do Rendimento Mínimo Garantido… E nunca por nunca ser tenta negociar para que o PS melhore aspectos do orçamento de estado, preferindo rejeitá-lo sempre em bloco…É dizer algo da responsabilidade que a “esquerda mais à esquerda” tem nisto tudo…
Tem graça que, durante a campanha, andava a ler “As Novas Cartas Portuguesas” na magnífica edição crítica organizada pela Ana Luísa Amaral e num dos poemas mais intensos do livro, “No mundo abandonado onde então erraremos”, se propõe: “Chamaremos um poeta para governo/Da cidade. Que substitua o demiurgo/De ciclópicos trabalhos”.
Em nota, explica-se, muito interessantemente, que: “A crítica política contida nestes dois versos finais é construída através da oposição entre as figuras do “demiurgo” e do “poeta”, tal como apresentadas na cosmogonia platónica”. A substituição do “demiurgo”(Timeu, em Platão) pelo “poeta” significa a substituição de uma divindade imitadora, de sabedoria limitada e imperfeita, por um espírito livre e criador que conduzirá a cidade a “um outro mundo”.
Tudo aqui evoca o contraste entre Cavaco e Alegre.
Mas, mais “engraçadamente” ainda, ali se explica também que a “expressão “ciclópicos trabalhos” aponta para uma crítica ao contexto político da época já que fora utilizada por Marcelo Caetano no seu discurso de tomada de posse a 27 de Setembro de 1968, referindo-se à tarefa de assegurar a continuidade relativamente ao legado político salazarista”.
Tenho que admitir que isto me fez lembrar o célebre “Deixem-nos trabalhar!” dito algures no tempo por Cavaco às alegadas “forças de bloqueio”…
Por fim, esta edição das “Novas Cartas” esclarece também, ainda a propósito deste poema, que Marcello Caetano se ligou, desde o início da sua carreira, à censura da literatura, tendo sido um dos principais responsáveis pela apreensão e destruição dos poemas de Judith Teixeira, cuja poesia se caracterizava pela temática homoerótica…
Bem… E isto também me fez recordar o lamentável veto do Sr. Presidente, em plena campanha, à lei da identidade de género, uma lei necessária e justa, imprescindível para tornar menos pesado o fardo de uma identidade pessoal que, por rzões sérias e ponderosas, se não pode suportar…
Embora o casal Professor Cavaco e Dra. Maria (esta com a sua chorada dependência financeira do “cabeça-de-casal” – para empregarmos um conceito apropriadamente marcelista) pareçam saídos de uma fotografia de 1971, não estou a comparar Cavaco a Marcelo…
Felizmente, o contexto é, hoje, democrático… Cavaco não voltará a ser eleito e aquele veto pode bem ser ultrapassado num futuro não muito longínquo…
Assim persistamos numa prática democrática diária, saudavelmente combativa.
Pode ser a Ana Luísa ainda venha a descobrir, na AR as abstenções não significam oposição mas crítica por insuficiência.
E, quanto ao rendimento mínimo, fique sabendo que o PCP foi o primeiro partido a apresentar um projecto de lei sobre ele e vá ver como o PS então votou.
E, quanto ao Orçamento, pesquise e vá ver quandas dezenas e dezenas de propostas na especialidade o PCP tem feito e como elas são implacavelmente chumbadas pelo PS.
Caro Vítor,
Já foi ver a Cornucópia a fazer a ” Cacatua Verde” no Teatro Nacional D. Maria II?
Lá canta-se “Le Temps des Cerises” que eu própria me apanhei a trautear de entusiasmo, adaptando o tema às revoluções árabes… Adorei! Mesmo!
De resto, parece-me que a sua resposta confirma o que escrevi… A minha premissa era clara: ” a responsabilidade é de todos”.
Subscrevo-me respeitosamente,
Ana Luísa Riquito