Esta crise formou-se subterrânea desde a década de 1980, e nos primeiros anos deste milénio era já inevitável e (digam o que disserem) previsível. Foi aliás, prevista.
Nunca gostei da frase “a única coisa a temer é o próprio medo” que Roosevelt disse no seu discurso de investitura no mês de março de 1933, em plena Grande Depressão. Nunca gostei da frase porque a achava pirosa, o que é uma péssima mania; eu era novo e não queria admitir que uma boa parte das coisas verdadeiras e/ou importantes acabam por força sendo pirosas. O problema das pessoas novas é — mais do que não terem experiência — não terem imaginação para recriar mentalmente um momento em que uma frase destas possa ganhar todo o seu sentido.
(O problema das pessoas velhas é igualmente falta de imaginação. Por experiência a mais ou a menos, a falta de imaginação é sempre um problema.)
Pela mesma mania, nunca gostei de outra frase, desta vez dita por Lula quando perdeu uma eleição: “o medo ganhou à esperança”. Parecia-me, igualmente, uma frase pirosa. Mas acontece o medo ganhar à esperança, tal como acontece ficarmos tolhidos pelo próprio medo. Agora sei, porque o vi acontecer.
Esta crise formou-se subterrânea desde a década de 1980, e nos primeiros anos deste milénio era já inevitável e (digam o que disserem) previsível. Foi aliás, prevista: a única questão era saber se a queda ia ser dura ou suave. Quando, no verão de 2007, a bolha imobiliária americana deu os primeiros sinais de rebentar, ficámos à espera: agora íamos saber.
Ainda assim, durante um ano inteiro esta crise foi observada em embrião por uma minoria de curiosos, enquanto ainda era teimosamente negada pelos poderosos, cuja frase de eleição era: “os fundamentos da economia são sólidos”. Ah, sim! Chegou setembro de 2008 e os alicerces da economia desmoronaram-se sob os nossos olhos. Uma série de falências em cadeia teria levado bancos e seguradoras para o buraco se as suas perdas não tivessem sido, no fundo, nacionalizadas. E quando se experimentou deixar cair um banco aparentemente dispensável — o Lehman Brothers — a economia mundial viu o abismo. A crise foi tão má como nas piores previsões.
Logo no fim desse ano de 2008, apesar de tudo, a sociedade reagiu e, num primeiro combate, a crise apanhou um belo soco no olho. A eleição de Obama foi uma vitória da esperança contra o medo, a frase não deixa de ser pirosa, mas foi o que foi. E até achámos que estávamos preparados para fazer frente à crise. Não seria fácil mas conhecíamos o exemplo histórico da Grande Depressão, sabíamos o que estava em causa, tínhamos alguma ideia do que fazer e, sobretudo, os erros da ideologia dominante estavam identificados.
Era cedo para cantar vitória; como num daqueles jogos de futebol em que uma equipa voluntariosa mas desorganizada marca um golo nos primeiros minutos, o resto do tempo tem sido passado a ver a vantagem fugir, primeiro, e uma derrota avolumar-se depois.
Nos EUA, Obama passou este tempo todo com medo de tudo: da Fox News, do Tea Party, de ser acusado de ser “socialista”. Logo no início do mandato, recusou nacionalizar os bancos por parecer uma coisa “não-americana”. Roosevelt não teve medos desses quando, poucos dias depois de chegar à presidência, fechou todos os bancos por uns dias e reabriu apenas os que se revelaram sólidos.
Na Europa, a influência do medo tem sido ainda mais penosa. Não é um medo-pânico, como talvez devesse ser, mas uma cobardia instintiva, feita de receio, mesquinhez e paralisia. Em 2010 instalou-se, e não se vê como vamos sacudir esta coisa de cima dos ombros.
Sabemos como estas coisas continuam: com um enfraquecimento da cidadania, primeiro, e da democracia depois. Eu, apesar dos sinais, ainda me recuso a admitir que a democracia não seja mais forte. Mas pode ser que — tendo vivido em democracia desde os dois anos de idade — simplesmente me falte imaginação.
7 thoughts to “O ano em que a crise ganhou”
Desculpe incomodá-lo mas será que podia dizer alguma coisa no seu blog sobre o Senado de Lisboa que menciona no seu PEQUENO LIVRO DO GRANDE TERRAMOTO? É que eu tenho procurado sobre esse órgão governamental da época mas não tenho encontrado nada…
1ºEsta crise formou-se subterrânea desde a década de 70,os efeitos da primeira crise petrolífera que o 25 de Abril agudizou
e nos primeiros anos deste milénio era já inevitável e (digam o que disserem) previsível. Foi aliás, prevista.Sim em 2006 após a bolha irlandesa muitos disseram que era necessário precaver a americana
mas em 2 anos nada se fez
do mesmo modo que se vive desde os 2 anos em cracia do demo
não tenha imaginação para um outro sistema
que inevitavelmente virá, não será necessariamente pior ou melhor
será diferente
não será uma volta aos novos regimes dos anos 20 e 30
se o século XX viu surgir esses
o século XXI virá surgir outros
desde novas teocracias islamitas a sabe-se lá o quê
mais repressivas que as democracias nas décadas de 20 e 30
é duvidoso
por enquanto o nº de mortos nas manifestações e o das prisões é baixo
estamos longe do universo concentracionário dos EUA
e dai talvez não…
tudo muda, apesar de no fundo não mudar grande coisa
(outra frase pirosa…nunca gostei de piroso…piromaníaco fica melhor
portanto inevitavelmente a sua democracia mudará como mudou nos últimos 80 anos
provavelmente a idade trouxe-lhe o desejo da estabilidade naquilo que conhece
do que a aventura numa sociedade desconhecida
enfim, quem nada tem a perder ansiará pela mudança como em todos os tempos
Não será antes, o ano em que os “mercados” ganharam?
Foi o ano dos “mercados”. Se não, perguntem a Teixeira do Santos ou a Cavaco Silva. Eles vos dirão.
2010: o Ano dos Mercados.
Apenas um reparo, Roosevelt agiu da forma que agiu devido, em grande parte, à mobilização dos sindicatos. Talvez se os mesmos tivessem saído à rua na altura, Obama teria medo, deles e não da Fox News e afins. A verdade é que o maior sindicato norte-americano, AFL-CIO, vendeu-se ao Partido Democrata que por sua vez está mais que vendido às grandes empresas e ao mundo financeiro.
Presidentes eleitos cuja campanha beneficiou de contribuições (bastante generosas) de Wall Street, só poderia dar nisto. Numa palavra, desde o início que Obama iria ser mais do mesmo mas com boa retórica, claro.
Resiliência da Democracia ou Império do Cinismo?
A propósito da crise, do futuro da democracia, de tiradas pirosas e de imaginação (e dos óbvios nexos de causalidade entre todas estas coisas), escreve Jean-Claude Guillebaud no derradeiro número de 2010 do
“Nouvel Observateur”:
“A crise, originariamente bancária, tornou-se financeira, depois económica, social e, por fim, política, estando, agora, a tornar-se também numa crise psíquica. Com efeito, entrámos num período de desconfiança, crítico até à irrisão, em que o sarcasmo e a desesperança podem, a qualquer momento, metamorfosear-se num cinismo desabusado. É assim que, eleitores, nos gabamos de não confiarmos nos políticos; contribuintes, acusamos o Estado de todas as pilhagens; cidadãos, julgamos a nossa democracia mentirosa e frívola; justiceiros, escarnecemos da justiça. Eis-nos ébrios de lucidez e de desconfiança. Por isso, se a coesão social está em perigo, mais ainda está-o a coesão mental. Ameaça-nos um novo Império: o do cinismo. Ora, qualquer comunidade necessita de projectos comuns e de convicções partilhadas. Como manteremos nós a nossa democracia e as nossas instituições se escarnecemos antecipadamente de tudo?”
Depois de reflectir nestes termos sobre o momento presente, o Autor considera que é chegada a hora em que teremos que encontrar resposta às célebres interrogações que Nietzsche formulou no livro III da sua “Gaia Ciência” ou “Alegre Sabedoria”: ” Como pudemos esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte?”. E é assim que Jean-Paul Guillebaud propõe como princípio de solução para este “mundo intrujado pela ganância do capitalismo global” uma fórmula pirosa a exigir-nos o melhor da nossa imaginação: “um outro mundo é possível”. É esta a convicção primordial, básica, simples e forte, a partir da qual as nossas sociedades poderão reconstituir-se.
Primeiro Post-Scriptum:
Diga-se, em abono de uma leitura possível deste texto do Jean-Claude Guillebaud, que o Autor – ao contrário de mim, que não passei pela estrada de Damasco, – é cristão, característica condicionante que é, sem dúvida, uma das determinantes do seu pensamento, como resulta claro do seu ” Le Príncipe d’ Humanité” que, em 2001, ganhou o Prémio Europeu do Ensaio, e, mais ainda, da sua reflexão ulterior em ” Comment je suis redevenu chrétien?”.
Contudo, sejamos justos: neste artigo e, aliás, na restante obra, não há proselitismo religioso. A premissa é aqui tão-somente e apenas a do “desencanto que a deflagração de uma crise sem paralelo causada por um sistema económico neoliberal provocou em todas a gerações de uma Europa democrática”. Assim, a necessidade que o Autor identifica de “pensarmos fora da caixa” – diríamos nós agora numa fórmula não menos pirosa, mas mais anglo-saxónica – pode ser subscrita por todos, crentes e não-crentes.
Segundo Post-Scriptum:
Interessantemente, e ainda a propósito de tudo isto, o mesmo número do “Nouvel Observateur” traz uma entrevista a três estudiosos intitulada “Onde vai a Democracia?”, significativamente ilustrada por uma tocante fotografia do nosso 25 de Abril, da nossa ” révolution des oeillets” que proporcionou a Samuel Huntington escrever a única coisa certa da sua carreira (bom, está bem, estou a exagerar…) quando a classificou como o início da “terceira vaga”.
Entre muitas outras ideias pertinentes, se um dos entrevistados (Marcel Gauchet) considera que a democracia está neste momento a sofrer uma “crise de crescimento” em que ela é cada vez menos efectiva, tanto ao nível da deliberação, como ao nível da decisão, outro (Pierre Rosanvallon), entende que a democracia contém sempre em si mesma tensões estruturantes: por exemplo, o governo representativo será uma forma política deliberativa original ou um substituto ideal, julgado ” superior”, da democracia directa?
Outra tensão fundamental é a que deriva da contradição entre o princípio da proximidade (procuramos escolher quem se parece connosco) e o princípio da capacidade (os mais competentes para a acção governativa).
Existe ainda desde sempre uma ” incerteza funcional” quanto à concepção do “povo”: é que, no exacto momento em que as democracias o declaravam ” soberano”, faziam também surgir sociedades altamente individualistas.
Hoje, o problema da democracia não é apenas o do regime político, mas o da “forma de sociedade”: a crise da democracia é social tanto quanto é institucional, pois está inextricavelmente ligada ao desenvolvimento de desigualdades que impedem a sedimentação de um mundo comum.
Por fim, ainda, Pierre Manent refere-se, nos seguintes termos, ao processo de construção europeu: ” a empresa europeia foi, depois da guerra, uma das manifestações da retoma da confiança das nações europeias em si próprias e no seu projecto democrático. A partir dos anos 90, porém, a classe política europeia tonou-se parte e instrumento de uma oligarquia crescentemente “autárcica” funcional e espiritualmente, que tão segura está do seu mandato histórico que se tornou independente de qualquer mandato popular. Assim, esta tem vindo a instalar sobre as sociedades europeias a ideia e o prestígio de um processo irresistível, feito de regras impessoais, que não são susceptíveis de negociações políticas e relativamente às quais o destino dos povos consiste doravante em se lhes vergar.”
A entrevista termina, pois, sobre o tom do combate à letargia colectiva da Europa, que tem trunfos reais para revitalizar a sua vivência em democracia, – por exemplo, é o espaço do mundo onde há maior abertura à diversidade – assim tenhamos a capacidade de nos pensar e projectar como um verdadeiro conjunto político vivo e coeso.
Felizmente suspeito que está encontrado um pensador sistémico ao nivel de um Agostinho ou de um Eduardo Lourenço, infelizmente quando a tal experiencia que se queixa vier a tona, poderei apreciar os seus comentários, ouvindo um pouco de música no meu rádio de pilha e comendo batatas com pão, isto se tiver sorte.