Até àquele dia já tinham morrido oito, abatidos a conta-gotas. Se isto não é uma urgência, não sei que seja.

Christmas Island, ou Ilha do Natal, é um território governado pela Austrália mas localizado a apenas quinhentos quilómetros da Indonésia. Na madrugada de quarta-feira um barco com talvez uma centena de refugiados — tecnicamente, “requerentes de asilo” — nafragou ali, despenhando-se contra os rochedos. Morreram cerca de 30 pessoas, entre elas uma dezena de crianças, na maioria de origem iraquiana.

Conheci gente desta nos campos de refugiados da Síria do Norte e nos arrabaldes de Damasco. Não podem voltar a casa nem ficar onde estão.

Alguns são advogados ou engenheiros; perguntam-nos se achamos que emigrariam voluntariamente para ser taxistas ou faxineiras noutro país.

Muitos são cristãos; a absurda “guerra de civilizações” feita para defender “os valores ocidentais” tornou-lhes impossível a vida numa terra onde as suas comunidades perduraram milénios.

Praticamente todos correram risco de vida nas suas cidades e voltaram a corrê-lo para fugir. Outros desesperaram nos campos e voltaram a arriscar. Devem ter pensado que chegariam a uma vida nova antes do fim do ano.

É hábito em Estrasburgo que permaneçam reunidos, no fim das sessões do Parlamento Europeu, deputados em trabalho sobre direitos humanos. Chama-se a isto as “urgências”.

Na última sessão do ano ali ficámos, sessenta e poucos boiando num hemiciclo para mais de setecentos, rodeados de neve por todos os lados.

Nas montanhas da península egípcia do Sinai, cerca de 250 refugiados oriundos da Eritreia estão reféns de traficantes de seres humanos que lhes exigem resgates elevados. O governo egípcio primeiro negou que fosse verdade e depois disse que ia ver o que se passava; está agora a pensar fazer qualquer coisa. Enquanto isso, os traficantes vão violando as mulheres e executando os homens.

Até àquele dia já tinham morrido oito, abatidos a conta-gotas. Se isto não é uma urgência, não sei que seja.

A Eritreia, país de que pouco se sabe, é praticamente um campo de concentração no Corno de África. O serviço militar pode chegar a vinte anos. Quem deserta é condenado a prisão perpétua. Quem sai do país não pode voltar.

Aqueles reféns eritreus são, na prática, refugiados — e sê-lo-ão certificadamente assim que o ACNUR tiver acesso a eles. Para isso acontecer, é preciso que o governo egípcio aja.

Mas as coisas não ficam por aí.

A União Europeia tem um mecanismo de reinstalação de refugiados que foi emendado pelo Parlamento Europeu para, entre outros melhoramentos, poder ser acionado em caso de emergência (fui eu o relator e votámos a nossa parte em maio). Mas enquanto o Conselho — onde estão os governos dos nossos países — não completar a co-decisão este mecanismo não pode ser usado. Terminou a presidência espanhola, veio a belga, vai começar a húngara: não aconteceu nada.

Quando me levanto para falar, lembro que se o Conselho tivesse feito o seu trabalho, teríamos forma de salvar aqueles 250 refugiados. Nas bancadas do Conselho, estão dois burocratas sonolentos e ninguém para tomar a palavra. Do lado da Comissão, não desejam responder a essa pergunta.

Resta ao Parlamento votar sobre o caso dos eritreus. Quando vem o resultado, dá empate: 31 votos para cada lado. Resolução chumbada.

Olhamos uns para os outros em silêncio. Como balões esvaziados, começamos a sair da sala. Desejamos as boas festas. Vamos para os nossos aeroportos.

One thought to “Ilha do Natal”

  • Ana Luísa

    Ignominioso.

    Os pais fundadores da Convenção de 1951 já devem ter-se revolvido na tumba tantas vezes quantas o meu estômago já deu voltas com o cadastro dos WASPs de Camberra em matéria de cumplicidade na violação de direitos humanos.

    Para que não fiquemos obnubilados por esse formalismo – a distinção entre “requerentes de asilo” e “refugiados” gizada por respeitáveis juristas de ainda mais respeitáveis democracias brancas para, de facto, escaparem à proibição de “refoulement” – recordemos que o princípio da “não-expulsão”, tal como acolhido pela mencionada Convenção, exerce o seu “âmbito de tutela ou protecção” em dois momentos: i)a “não-rejeição” do pedido à entrada (e a consequente obrigatoriedade para o Estado requerido de examiná-lo de boa fé); e ii)a obrigação de acolhimento, uma vez comprovado o “fundado receio de perseguição, em virtude da raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas”.

    E, por falar em Austrália, ilhas, refugiados e sobretudo na “memória curta” desta (des)Humanidade em que vivemos… há quem, dos dois lados do Mar de Arafura, esteja amnésico…

    Parece-me, Rui, que a este seu artigo quadra bem, em rodapé, este “link” que uma vez me enviou:

    http://raiketak.wordpress.com/2010/08/22/prison-island-and-boat-people/

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