Que preferiríamos nós? Que o português fosse falado impecavelmente por 50 mil estrangeiros ou apenas compreensivelmente por 50 milhões?
Não se pode deixar escapar isto. Há muito tempo que não tinha oportunidade de defender o primeiro-ministro. Agora tenho. Infelizmente, não é por nada que ele tenha feito. Também não é por nada que ele tenha dito. É antes pela maneira como o disse. E disse-o mal.
José Sócrates foi, já se sabe, dar uma palestra sobre energias renováveis à Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Exprimiu-se lá num inglês alquebrado, que ele próprio descreveu no começo da sua fala, como “mau inglês”. O vídeo da palestra, que está disponível na internet e foi difundido pelas televisões, expôs Sócrates à impiedade dos seus críticos. Pacheco Pereira opinou neste jornal sobre o assunto; no seu blogue iniciou um post da seguinte maneira: “A mediocridade de Sócrates quando tem que defrontar o exterior sem guião, é visível com todo o seu esplendor na conferência universitária em Columbia”. O blogue 31 da sarrafada, da direita por uma vez voluntariamente humorística, fez uma compilação em vídeo das “calinadas” de Sócrates, legendando-as com cuidados extremosos de professora do Instituto Britânico. O clip revoou imediatamente pela internet e, na opinião de muita gente, expôs Sócrates ao ridículo.
Não percebo porquê. O inglês de Sócrates é mau? Sim, bastante. No entanto, já ouvi pior. Uns quilómetros abaixo da Columbia, na City University of New York, o grande Ottavio di Camilo falava um inglês tão macarrónico que preferia, sempre que possível, falar com os seus alunos em espanhol. Se bem que italiano de nascimento e residente nos EUA há décadas, era especialista em Cervantes, no Lazarillo de Tormes e na Comedia “La Celestina”. O seu delicioso inglês — híbrido de vendedor de chapéus de Sol na Calábria e de gangster num episódio dos “Sopranos” — nunca o impediu de ser diretor de departamento nem um dos melhores professores na sua área. O inglês de Sócrates é mau; mas o meu inglês, num dia mau, talvez não seja melhor. E não é por isso que deixarei de o usar.
A tolerância ao mau inglês é um dos elementos em que a sociedade norte-americana é superior, não tenho dúvida, a muitas europeias. Os americanos preferem ter aulas com um grande físico ou um grande filósofo a exigir que ele fale um inglês perfeito. Já os franceses, que no tempo em que a sua língua era grande não se incomodavam com as pronúncias de romenos como Tristan Tzara ou espanhóis como Picasso, tornaram-se hoje chatos, chatos e irritantes. Corrigem os estrangeiros a cada passo, mesmo que sejam eles mesmos incapazes de dizer uma palavra em português ou espanhol, qualquer delas uma língua mais falada no mundo. E isso faz da sociedade deles mais pobre, e da americana mais rica.
Que preferiríamos nós? Que o português fosse falado impecavelmente por 50 mil estrangeiros ou apenas compreensivelmente por 50 milhões? Que preferiria eu? Falar um alemão perfeito ou, simplesmente, falar algum alemão? Que preferiria o leitor? Falar uma língua estrangeira — vá, o inglês — sem mácula ou exprimir-se em cinco idiomas estrangeiros — incluindo o mandarim e o russo — desenrascadamente?
A opinião de Pacheco Pereira é, na verdade, das mais provincianas e atávicas inimigas da comunicação. Não haveria mal nisso, se ao menos não a tivesse escrito num português que está entre o miserável e o sofrível. Como se vê na frase acima, poderia ao menos aprender a usar as vírgulas.
7 thoughts to “O diabo está, nos detalhes”
Na minha opinião, o mais saliente deste caso não é o bad English, mas a oportunidade de vermos a dificuldade de ler em inglês por parte de um aluno que foi avaliado com 18 val. numa cadeira de inglês de uma universidade portuguesa.
Muito mais interessante, no entanto, é o CV do orador divulgado pela universidade americana: http://bit.ly/a1q3UY
Rui,
A referência ao inglês do Sócrates é apenas a parte divertida da questão, e justifica-se por nos lembrar, a todos, as circunstâncias curiosas da sua licenciatura e bastante inolvidáveis do seu exame de Inglês Técnico. Se queres saber, o que mais me irrita no seu discurso universitário nos “states” é o vazio do seu pensamento. Facto que é independente da sua manifesta aversão ao inglês e que dificilmente atingirá os professores que citaste.
Dr. Rui Tavares,
O seu texto no que concerne ao “31 da Sarrafada” – que faz questão em não linkar demonstrando um desrespeito pelas regras mais básicas da blogoesfera – é desonesto.
Desonesto porque classifica o “31 da Sarrafada” como um blogue de direita que não é! De todo!!! Só quem anda muito desatento é que pode dizer um disparate desses.
Mais ainda, como autor do vídeo, nem sequer fui extremoso: Se fosse extremoso teria que colocar o vídeo completo da intervenção de Sócrates que escolheu – ao abrigo de um pretenso MBA e de uma disciplina de Estratégia ou qualquer coisa (sic) – falar em mau Inglês.
Como penso que deve ter visto o vídeo Sócrates comete gaffes muito graves que nada têm a ver com pronúncia – Infelizmente trocado por Felizmente por exemplo.
Felizmente vivo numa sociedade que não tem que se reger pelos valores linguísticos ou outros quaisquer dos Americanos – que são uns dos maiores assasinos da língua Inglesa.
Espero que dê o mesmo destaque a este comentário na sua crónica no Público, especialmente à acusação falsa da posição política do 31 da Sarrafada que é falsa, desonesta e que só mancha a imagem do nosso blogue.
Com os melhores cumprimentos,
Fernando Fonseca
Há responsabilidades que uns têm e devem e outros não precisam.
O seu raciocínio está enviesado; mais contra o Dr. Pacheco Pereira que na análise da questão, infelizmente.
Ainda, veja o site da Columbia University onde não consta que o Sr. José Sócrates tenha estado.
Muito bom, Rui. é um sinal do provincianismo português, que goza com o facto do Sócrates falar mau inglês mas se maravilha quando um estrangeiro consegue dizer um mero ‘obrigadoo’.
Concordo com tudo o que dizes, especialmente:
“Que preferiríamos nós? Que o português fosse falado impecavelmente por 50 mil estrangeiros ou apenas compreensivelmente por 50 milhões?”
O problema é que um primeiro ministro não é uma pessoa qualquer, é o representante de um país. Assim como ele não pode vestir uma minisaia, exprimir-se publicamente numa língua que não domina, é algo que o ridiculariza e o pais que ele representa.
Mas de facto o seu inglês não é assim tão mau e pode ser usado para comunicar com os seus pares internacionais em reuniões privadas.
Obrigado por este artigo honesto e sem insultos desmedidos à classe politica como é hábito.
Cumprimentos.
Dre
Apenas porque quando critico gosto de o fazer frontalmente:
http://ambio.blogspot.com/2010/10/predadores-de-topo.html
Bem sei que é off-topic para este post, mas é o que se arranja para lhe dar a conhecer um crítica ao que escreve.
henrique pereira dos santos