Se a ideia de privatizar é poupar uns euros no défice, trata-se de uma péssima ideia. E em troca desse disparate teremos um mau serviço quando tínhamos bons correios.
Se eu pudesse dar um conselho aos nossos governantes, presentes e futuros, sobre os correios portugueses, esse conselho seria: se é para estragar, nem sequer pensem em mexer-lhes. Não é por acaso que, em estudos feitos há alguns anos, os correios apareciam como uma das instituições em que os portugueses mais confiavam. A razão era simples: funcionavam.
A prova pude fazê-la mudando de país. Na Bélgica, onde passo uma grande parte do meu tempo, o serviço prestado pelos correios é manifestamente inferior ao serviço equivalente em Portugal. E isso é também manifestamente irritante: num tempo dominado pela Internet, a importância de ter correios fiáveis aumentou, não diminuiu – desde logo, por causa do comércio postal, mas também do envio de senhas de utilizador por carta. Aqui na Bélgica as encomendas às vezes chegam, outras vezes chegam tarde, outras vezes não chegam.
Será isto porque os correios belgas foram privatizados a 49,9%? Se a honestidade intelectual nos manda admitir que algumas privatizações possam fazer sentido, isso significa também reconhecer que outras não fazem sentido nenhum. E, sobretudo, deve levar-nos a olhar para os dados empíricos: afinal, que diabo, há outros países que tentaram o mesmo antes de nós. Que tal perguntar? Tanto quanto consigo saber, a resposta é: na Holanda, os correios pioraram após a privatização; na França também; na Inglaterra o serviço deteriorou-se de tal forma que o Governo teve de recuar. Se a ideia de privatizar é poupar uns euros no défice, trata-se de uma péssima ideia: após a privatização, o défice lá continuará (como já devem ter reparado, andámos a privatizar tudo o que mexe nos últimos anos e os défices não desapareceram). E em troca desse disparate teremos um mau serviço quando tínhamos bons correios.
Um dos meus tios preferidos, já falecido, era carteiro – e sindicalista. Um dos meus primos é também carteiro, e por coincidência no Bairro da Graça, em Lisboa – ou seja, o meu primo é também o meu carteiro em Portugal. As senhoras dos prédios à volta confiam-lhe as chaves e esperam pela suas cartas com a pensão de reforma e com as contas. Conhecem-no há anos. Nas aldeias deste país, o carteiro é um vínculo diário com o resto do mundo, ainda uma das poucas maneiras de dizer ao interior que é tão Portugal como as grandes cidades. Os correios têm – como a direita gosta de dizer – uma função de soberania sobre o território.
Infelizmente, o bom serviço que ainda vamos tendo já foi piorando nos últimos anos. Vocês, carteiros e carteiras, na rua ou na estação, são os primeiros a reconhecê-lo, e até sabem explicá-lo: é que uma privatização não acontece só quando é anunciada. Na maioria dos casos, ela vem de antes e vai sendo feita pela calada. No caso dos correios, alguns dos serviços de entrega já são privados e estão entregues ao trabalho temporário. E com isso acontece aquilo com que o meu tio nem sequer sonharia: cartas lançadas ao lixo ou rasgadas quando devolvidas, a “volta” feita por amigos ou parentes estranhos ao serviço, etc. Os nossos correios já estão a ser privatizados, já estão piores do que já foram, e agora estamos apenas à espera que a guilhotina política caia sobre as vossas cabeças.
Vocês hoje estão em greve, e eu sinto-me convosco. Comecei com um conselho aos governos. Poderei acabar com outro para vocês? É algo que vocês conhecem bem, a regra número um da velha e honesta luta dos trabalhadores: o público tem de entender por que vocês lutam e vocês têm de ir escolhendo formas de luta que garantam esse apoio da população em geral. De resto, boa sorte: por vocês e por nós.
2 thoughts to “Carta aos carteiros”
Olá Rui,
não sei se pode dizer que em França os correios foram privatizados. A “La Poste” foi transformada em Sociedade Anónima com capitais (para já) 100% públicos. É verdade que os sindicatos falam de uma privatização em curso. Mas a coisa é tão recente (março deste ano) que não me parece que possa haver grandes conclusões sobre melhoria ou pioria dos serviços.
um abraço amigo
Boa noite,
Desde já, os meus parabéns pelo site,infelizmente meu caro, a têndencia é piorar, como o SNS, e todos os outros serviços. E vá lá enquanto sem dar por ela não vendemos tudo ás grandes empresas