O apego de muitos seguidores dos temas geopolíticos à ideia de “grandes poderes” vistos como entidades constantes e capazes de moldar a realidade à sua volta leva muita gente a uma posição na qual são forçados a permanentemente arranjar justificações retrospetivas para as ações ou omissões de Putin como se todas elas (ações ou omissões) fossem sempre jogadas de um estratega brilhante.
Esse apego é aliás tão forte que até num fim de semana como o que acabámos de viver – com uma rebelião da milícia mercenária “Wagner” e o seu avanço rápido e sem oposição para Moscovo, com uma desistência à última hora do seu líder Prigozhin, a quem Putin acusara de traição na manhã de sábado para lhe oferecer uma amnistia na tardinha – há quem não tenha deixado de colocar a hipótese de estar perante uma encenação elaborada de Putin com o objetivo de colocar Prigozhin na Belarus e assim abrir mais uma frente na guerra com a Ucrânia. Em cada cavadela, mais uma estratégia brilhante.
Para quê fazer simples quando se pode fazer complicado, não é? Pois é, nesse caso então me declaro simplório. Penso que teria sido muito mais brilhante para Putin não se enfiar num atoleiro no extremo ocidental do seu território quando tem uma extensão de doze fusos horários com enormes recursos naturais para desenvolver. Imagino que um Putin que não estivesse a desguarnecer o interior e o extremo-oriente do seu país em favor de uma guerra na Europa dificilmente cairia numa situação de vulnerabilidade em relação à China. Vou até mais longe e ponho-me a pensar que talvez nunca nenhum governante tenha tido tantos recursos para desenvolver o seu país como Putin e que se ele os tivesse utilizado a reforçar a Rússia do ponto de vista social, ambiental, cultural e científico estaria hoje numa situação muito melhor do que depois de décadas de investimento em expansionismo, propaganda e espionagem.
Estando certo que o simplório sou eu e que as leituras sofisticadas são aquelas que tentam em cada fracasso ver uma jogada brilhante de Putin, reconforta-me ao menos saber que ali onde os amadores da geopolítica pontificam alguns historiadores têm acertado em algumas coisas cruciais desde o início desta crise do sistema internacional.
Lembram-se quando nos diziam que era impossível haver invasão, poucos dias antes de 24 de fevereiro de 2022, porque o brilhantismo de Putin o impediria de cometer esse erro? (Claro que passado uns dias a explicação teve de mudar, mas passemos adiante). Entre historiadores houve quem tivesse lido o ensaio histórico de Putin no verão de 2021 e dito que uma guerra contra a própria existência da Ucrânia era uma possibilidade clara.
E se essa guerra era uma possibilidade clara, e aconteceu mesmo, é porque a caracterização que podemos fazer da Federação Russa é a de uma potência em declínio, capaz de tomar este tipo de decisões temerárias para tentar inverter esse curso de declínio.
Com tudo o que aconteceu nos últimos dois anos, o declínio ficou mais inevitável e espectacular. Mas não se enganem. Putin fez isto ao seu país e a si mesmo, recusando todas as alternativas mais construtivas. Não há espiral justificativa que mude essa realidade.
(Artigo publicado no jornal Diário de Notícias, 26 de junho de 2023)