|Do arquivo Público 05.01.2018| Agora que se aproximam a trote dois mil anos sobre a sua galopante carreira política, certamente que muitos leitores reservam de quando em vez um pensamento em memória de Incitatus, o cavalo preferido do Imperador Calígula. Reza a lenda que, cansado (o imperador, não o cavalo) da classe política de Roma, Calígula decidiu elevar o seu cavalo Incitatus à dignidade de Cônsul, o que obrigaria os senadores a prestarem-lhe homenagem (ao cavalo, e claro que também ao imperador).

Pelo menos assim o contou Suetónio nas suas Vidas dos Doze Césares. Ora, ninguém sabe bem se Calígula chegou mesmo a fazer do cavalo Incitatus cônsul, ou se falava disso apenas para insultar os senadores. Mas a história de Incitatus atravessou séculos como quem nos diz “estes romanos são loucos”.

Calígula era o líder do maior império do mundo conhecido, e mais estrambólico do que ele houve poucos. Até agora. Ao ler ontem os vários excertos que foram sendo publicados do livro que sobre Trump escreveu o jornalista Michael Wolff pensei que tínhamos finalmente material contemporâneo a valer uma comparação com os doze césares narrados por Suetónio. Michael Wolff, que passou bastante do seu tempo na Casa Branca, descreve-nos um líder do maior império do mundo conhecido que é volúvel, paranóico e ignorante a ponto de ser praticamente analfabeto. Não só Trump não lê, como não gosta que lhe expliquem o que está escrito em textos essenciais que deveria conhecer. Um dos seus apoiantes visitou-o para lhe explicar os artigos da Constituição dos Estados Unidos da América: não conseguiu passar da quarta emenda antes que Trump o mandasse calar.

E não é preciso acreditar nas histórias de Michael Wolff para conseguir ver em Trump uma versão pós-moderna de um imperador julio-cláudio tardio. Basta ler o que o próprio Trump escreve no Twitter, a começar pela sua briga com Kim Jong-Un sobre qual dos dois teria um botão nuclear maior em cima da mesa. Calígula mandava apenas o exército impor o silêncio nas ruas em torno do estábulo imperial quando Incitatus estava a dormir. Nada que chegue para provocar milhões de mortos em poucos minutos.

Há pois comparações que desfavorecem claramente o nosso tempo. Ao menos Nero tinha como preceptor Séneca, e quando Séneca percebeu no que Nero se tinha tornado, foi para a sua quinta e cortou honrosamente os pulsos. Trump teve como chefe de estratégia Steve Bannon, e o mínimo que se pode dizer é que Bannon não tem apetência para sair de cena como Séneca. Bannon decidiu dizer cobras e lagartos de Trump. Trump acusou Bannon de ter perdido a cabeça. Ato contínuo, Bannon decidiu dizer que Trump era afinal um grande homem. Faz sentido.

Mas há uma coisa que Bannon disse que faz ainda mais sentido. Não tem a ver com a ignorância de Trump, nem com a sua paranóia, nem com o seu egocentrismo. Tem a ver com algo que tem feito mover subrepticiamente a política nestes tempos de nacional-populismo: lavagem de dinheiro. Disse Bannon (e não foi desmentido): 

“Está-se mesmo a ver a ver onde isto vai acabar. Tudo isto tem a ver com lavagem de dinheiro. Isto passa pelo Deutsche Bank e [os procuradores] vão investigar isso tudo.”

Quando um dia se olhar a sério para a revolução nacional-populista de 2016, que não surpreenda ninguém que se descubra quão importante foi a lavagem de dinheiro, a evasão fiscal e o planeamento fiscal agressivo enquanto móbil das campanha políticas nos EUA e também no Reino Unido (onde uma grande parte dos líderes do Brexit estavam envolvidos com estas práticas e desejavam naturalmente evitar qualquer tipo de políticas mais assertivas contra paraísos fiscais, na UE ou fora dela).

Eu não acredito forçosamente em Suetónio e não sei, portanto, se Calígula chegou mesmo a nomear como cônsul o cavalo Incitatus. Mas não preciso de acreditar em Bannon para perceber que a verdadeira roupa suja de Trump é a lavagem de dinheiro. O resto é apenas uma muito perigosa distração.

(Crónica publicada no jornal Público em 05 de janeiro de 2018)

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