|Do arquivo Público 03.01.2018| Um dos indícios mais fortes de uma depressão económica é ocorrer uma quebra na produção industrial. E uma das formas mais fáceis de o prever é seguir o Índice dos Gestores de Compras, que nos informa sobre as encomendas e aquisições feitas a cada mês pelas empresas. No início da crise, de 2007 a 2009, este índice caiu para quase metade dos níveis anteriores na zona euro. Pouco tempo depois, estávamos na mais profunda recessão desde 1930.

E em 2018? Saíram ontem os números deste índice. São a primeira boa notícia do ano para a zona euro. São mesmo os melhores números, não só desde 2007, mas desde 1997 — ou seja, desde antes da introdução do euro e desde que estas estatísticas começaram a ser compiladas. Melhor ainda, estes números não ocultam uma qualquer divergência entre as economias da zona euro, como já aconteceu no passado, mas refletem antes um crescimento conjunto das economias de todos os países do euro. A Alemanha, a Áustria e a Irlanda estão com crescimento recorde — mas a Grécia também terá provavelmente o seu melhor ano desde há muito tempo.

Não sabemos o que fazer com isto. Dez anos de crise deixam marcas, para mais quando esses dez anos se acrescentam a um início de século duríssimo.

Façamos o exercício: a passagem de ano que acabámos de celebrar marca também o momento em que começarão a votar os cidadãos inteiramente deste milénio. Nascidos em 2000, é agora em 2018 que chegarão à maioridade numa maioria de países. Ora, de que se lembram os nossos concidadãos nascidos neste milénio? As suas primeiras memórias políticas podem muito bem ser as da reação aos ataques terroristas de 2001, a Guerra do Iraque, e o tempo do “choque de civilizações”. Em 2008 viram Barack Obama ser eleito presidente dos EUA mas uns tempos antes já tinha começado a Longa Depressão. Se são do mundo árabe, viram as suas esperanças de democracia esmagadas. Se são latino-americanos, não sabem para onde vão as suas repúblicas. Se são turcos ou russos, o estado de direito é para eles uma miragem cada vez mais distante. Se são europeus, nunca viram a União Europeia em nenhum outro estado que não seja de crise, ou a falar da crise, ou ainda inconvencida de que pode ter saído da crise. Se são portugueses, gregos, italianos, etc., nunca viram os seus pais de outra forma senão contando os tostões, enfrentando cortes nos serviços públicos, desempregados, endividados, penhorados. Sabemos que as gerações são moldadas pelo clima política em que vivem até aos seus 20 anos. Mas não sabemos como são moldadas. É difícil perceber que impacto terão estas quase duas décadas de crise na psique coletiva de quem vai agora começar a votar. Mas teremos de começar a pensar nisso.

Para responder à pergunta que pus no título, a verdade é que não estamos preparados para uma não-crise. Estaríamos, é certo, mais bem preparados para seguir em crise. E, no entanto, é preciso estar tão bem preparado para uma não-crise como para uma crise. Estar preparado para uma não-crise não significa desligar da realidade e aproveitar, tal como não significa insistir que a crise nunca nos abandonou. A primeira opção seria irresponsável, a segunda paralisante. Ora, estar preparado para uma não-crise é coisa séria: daqui a dez anos muitas profissões podem já ter sido transformadas ou extintas pela automação, ou a temperatura do planeta pode já ter subido dois graus, ou o sistema internacional virado do avesso pelos nacionais-populistas no poder, ou os temas culturais e sociais podem ter voltado a suplantar a crise económica como o principal fator de divisão (ou de união) da espécie humana. Tudo depende de nós. Tudo depende de como soubermos ler o tempo que temos pela frente e aproveitá-lo bem. Tudo depende da bagagem que quisermos levar para o futuro.

Deixem-me terminar a crónica como tinha pensado começá-la. Depois dos dez anos da Guerra de Tróia, Ulisses demorou dez anos a voltar à sua casa em Ítaca. Para os primeiros dez anos precisou de resiliência, coragem e imaginação. Para os outros dez precisou de imaginação, coragem e esperança.

Ou seja, a resposta começa por aí: em crise ou não-crise, é sempre preciso imaginação e coragem.

(Crónica publicada no jornal Público em 03 de janeiro de 2018)

Skip to content