|Do arquivo Público 22.12.2017| Ontem não foi a primeira vez que os EUA votaram isolados na Assembleia Geral das Nações Unidas. Em matéria de conflito israelo-palestiniano, então, os votos isolados ou acompanhados apenas de mais um ou outro aliado foram frequentes no passado. Mas não deixa de causar um certo pasmo ver quem acompanhou os EUA nas Nações Unidas: um conjunto de nove países composto por Guatemala, Honduras, Israel, as Ilhas Marshall, a Micronésia, Nauru, Palau e Togo. E isto depois de muito espernear, ameaças e chantagem emocional por parte da ainda superpotência mundial.
É impossível hoje olhar para os EUA e não ver a profunda crise de credibilidade internacional em que a presidência Trump está a meter o seu país. A grande surpresa é ver que o sistema internacional se tem aguentado relativamente bem sem o paternalismo hegemónico da superpotência americana. Trump anunciou a saída do Acordo de Paris contra as alterações climáticas, o resto do mundo ficou firme. Trump tentou fazer implodir o acordo de não-proliferação nuclear com o Irão, a UE e as restantes potências signatárias responderam que o acordo continuaria em vigor. Isto leva à pergunta: será que uma superpotência isolada é ainda uma superpotência? E caso o não seja, que tipo de sistema internacional estaremos a ver emergir?
Há no mundo duas outras potências preparadas — real ou imaginariamente — para a paridade com os EUA. Ambas foram identificadas pela nova Estratégia de Segurança Nacional norte-americana como sendo “potências revisionistas”: a Rússia e a China.
Mas há enormes diferenças entre uma e a outra.
Desde que a URSS perdeu o seu posto de superpotência com o fim da Guerra Fria sobrou em Moscovo uma elite político-militar, centrada em torno dos serviços secretos, que sonha com um regresso ao estatuto anterior. Só que, apesar do poderio militar russo, os sonhos de Putin são apenas sonhos. A economia russa é menor do que a italiana. A influência russa chama-se interferência e não é bem vinda em praticamente nenhum lugar do mundo. A Rússia só pode sonhar com uma paridade com os EUA se Trump continuar a destruir a credibilidade do seu país a este ritmo durante muito mais tempo.
Já a China é um caso diferente. A China foi uma superpotência durante séculos, e quando o voltar a ser quererá manter-se no mesmo posto durante séculos também. Do ponto de vista chinês, o período de fraqueza por que passou o país desde o tempo das Guerras do Ópio (que farão duzentos anos daqui a duas décadas) é uma anomalia histórica que será corrigida — com muita paciência e trabalho disciplinado. Isso implica fazer amigos e construir alianças. Enquanto os EUA não forem de confiança, é uma estratégia que pode dar bons resultados.
E a União Europeia? A UE não é uma superpotência militar. O euro ainda agora saiu de uma crise. A união política está por fazer e a democracia europeia por construir. Mas há uma faceta em que a UE dispõe já de um poder determinante: a Europa é uma superpotência regulatória. A decisão do Tribunal de Justiça da UE sobre a Uber, esta semana, abre a porta a que esta empresa da alegada “nova economia” tenha de dar as mesmas garantias e direitos laborais que qualquer empresa de transportes. E o mercado europeu não pode ser ignorado pela Uber, como não pode pela Google ou pela Ikea. O efeito de escala da UE, se for bem usado, pode meter alguma ordem na globalização das multinacionais.
Tudo depende da forma como a UE conseguir credibilizar o seu próprio projeto junto dos cidadãos e recentrá-lo no respeito pelo Estado de direito e pelos direitos fundamentais. Por isso a notícia mais importante da semana foi o início de um processo da Comissão Europeia contra a deriva autoritária na Polónia — um tema a que voltarei em breve.
(Crónica publicada no jornal Público em 22 de dezembro de 2017)