|Do arquivo Público 29.01.2018| Escrevi na passada sexta-feira sobre violência doméstica. Não é tema em que haja muito para discordar, e portanto não gerou muitos comentários. Um dos que gerou, porém, chamou a minha atenção.

Era de um leitor que, como eu, se queixava da falta de meios na justiça e da pouca prioridade do tema na política. Logo a seguir, porém, justificava essa falta de meios por “quase toda a economia ser já de propriedade estrangeira e de civilizações afastadas da ocidental”. Não esquecendo, é claro, que o país está “dependente da UE”.

Ou seja: já repararam que até num tema duplamente doméstico e nacional se consegue encontrar maneira de lá meter os estrangeiros e, ainda para mais, “de civilizações afastadas da ocidental”? O leitor não chegou ao ponto de dizer que os estrangeiros são a causa do problema. Só acenou, casualmente como hoje se tornou habitual, para a culpa que eles supostamente têm de o problema da violência doméstica em Portugal não ser resolvido.

Esta atitude vai muito para lá das caixas de comentários. Enquanto escrevo estas linhas encontro-me, por razões académicas, em Itália. Numa livraria encontrei a mesma atitude nos primeiros três livros que folheei.

Num deles, um juiz queixava-se de Garibaldi por ter levado a unificação de Itália até ao Sul. “Se não tivesse invadido Nápoles e a Sicília, seríamos hoje um dos países mais evoluídos do mundo.” Noutra prateleira, um livro defendia a tese contrária: ostentando orgulhosamente o brasão da Dinastia dos Filipes na capa (incluindo, pasme-se, as quinas portuguesas), prometia um “movimento neo-borbónico” para libertar Nápoles e a Sicília da tirania do Norte. A culpa é sempre dos outros: sulistas, se fores do Norte; setentrionais, se fores do Sul; europeus e árabes se depois de tudo isto ainda fores italiano.

O livro que estava em maior destaque, de um jornalista e comentador, tinha por título TRAÍDOS! SUBMETIDOS! INVADIDOS! — em inevitáveis maiúsculas. A tese não era subtil. “Estamos perante uma perspectiva apocalíptica: a extinção dos italianos”. A extinção dos italianos, a sério? Sim, claro: “a sua desaparição da história por culpa de uma derrocada demográfica” provocada por políticos que deixam “que um rio de imigrantes, de cultura e religião diferente, desembarquem” no país. E porquê? Por causa “da perda de soberania política, com Maastricht”.

Portanto, a Itália corre o risco de extinguir-se por causa de 4% de imigrantes (abaixo da média europeia). E os italianos, que fazem? “O povo italiano reagiu sempre exprimindo a sua extraordinária genialidade, que iluminou o mundo em todos os campos dos saberes, da vida e das artes (e também com os seus santos)”.

Recapitule-se: a “extraordinária genialidade” dos italianos, com os santos e tudo, não os impediu de ter uma classe política minada pela corrupção (não estrangeira, note-se, mas da máfia local). Maastricht não os impediu de ter soberania para eleger Berlusconi. Os estrangeiros não impediram a Itália de crescer extraordinariamente nos primeiros 40 anos da integração europeia nem de ter, ainda hoje, uma indústria que vale o dobro da britânica. Mas, para o autor, essa genialidade não chega para ter confiança no futuro, porque os políticos TRAÍRAM os italianos, os SUBMETERAM aos interesses estrangeiros, e os querem INVADIDOS por uma população imigrante (que está, note-se, muito muito abaixo dos níveis da emigração italiana que se espalhou pelo mundo quando havia mesmo imigração de massa).

Comemorámos este fim-de-semana o Dia de Memória das Vítimas do Holocausto. Vítimas essas que não morreram só nos campos de concentração, mas começaram a ser assassinadas muito antes, quando demagogos decidiram vender a ideia de que os seus povos estavam em risco por causa de uma camada ínfima da população, na altura os judeus, a quem os políticos se tinham supostamente vendido.

Convém lembrá-lo. Não só porque qualquer comparação com a retórica dos livros que estão nas montras de tantos países ocidentais não é mera coincidência. É preciso lembrá-lo para assinalar um duplo “não”. Não — a culpa não é dos outros. E não — o passado foi tudo menos maravilhoso.

(Crónica publicada no jornal Público em 29 de janeiro de 2018)

 

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