|Do arquivo Público 25.08.2017|O último dia normal da vida de Jan Karski foi um dia como este. Pelo calendário, teria calhado anteontem: 23 de agosto. Só que o ano era 1939, e a cidade Varsóvia. Jan tinha 25 anos e era amigo de um português — filho do embaixador de Portugal na Polónia, César de Sousa Mendes, e portanto sobrinho de Aristides de Sousa Mendes — que o convidara a ir a um baile da embaixada do seu país. Jan ficou encantado com uma das filhas do embaixador. Ao chegar a casa nessa noite, um dos seus planos para a semana seguinte seria levar a jovem portuguesa a almoçar com um grupo de amigos.

A resistência polaca em Oswiecim durou pouco; Karski e os seus camaradas de armas foram forçados a retirar para o leste da Polónia. Quando chegaram, descobriram que essa metade do país seria anexada pelas tropas de Estaline (o protocolo secreto do Acordo Molotov-Ribbentrop, através do qual Hitler e Estaline partilharam entre si a Polónia, fora assinado em Moscovo na mesma noite em que Karski bailara e namoriscara na embaixada portuguesa em Varsóvia).

Karski foi incluído numa troca de prisioneiros e com isso escapou ao massacre das elites militares polacas na Floresta de Katyn. De novo no lado alemão, Karski fugiu lançando-se por uma janela de um comboio de mercadorias quando o transportavam para um campo de concentração.

Regressado a Varsóvia, Karski alistou-se no “estado clandestino polaco”, a rede que ligava os resistentes polacos ao governo do país no exílio. Nos primeiros tempos, Karski serviu de correio, fazendo viagens arriscadas até França. Depois foi apanhado pela Gestapo nas montanhas entre a Eslováquia e a Hungria. Não tolerando a tortura, tentou suicidar-se. Foi encontrado inconsciente e enviado para um hospital de onde a Resistência conseguiu retirá-lo (“as nossas ordens são para te libertar ou para te matar”, foram as palavras dos seus camaradas).

Jan Karski passou os anos seguintes em várias missões clandestinas. Por possuir boa memória e não pertencer a nenhum partido político, voltou a ser escolhido como correio entre os partidos polacos representados na resistência e os seus elementos de ligação no exílio, agora em Londres. No segundo semestre de 1942, quando se preparava para viajar, incluiu na sua ronda os dois partidos de judeus polacos. Os representantes dos partidos judaicos vinham do Gueto de Varsóvia e foram muito claros: “no fim da guerra, os polacos terão de novo o seu estado; mas os judeus da Polónia terão sido exterminados”.

Karski conseguiu entrar no Gueto e depois, disfarçado de soldado estónio, visitar o campo de concentração de Bergen-Belsen antes de abandonar a Polónia. Em Inglaterra e nos EUA, em 1943, foi uma das primeiras testemunhas a denunciar o extermínio do judeus europeus — enquanto era possível interrompê-lo.

Li nas últimas semanas o extraordinário livro que então escreveu — na edição portuguesa, da Ed. Bizâncio, chama-se O Meu Testemunho Perante o Mundo. É uma obra imperdível: bem escrita, com grande capacidade evocativa, até divertida por vezes e, por fim, um murro no estômago. Um dia, quando houver vontade política para criar um pequeno currículo comum europeu, o livro de Karski deveria ser leitura geral. Poucas leituras nos poderão deixar tão abismados perante a terrível linha que separa um jovem de 25 anos de um baile e um namorico para uma catástrofe continental. Poucos livros nos poderão deixar tão gratos por saber que para os jovens da Europa, 78 anos depois, um verão de praia, interrail e festivais será felizmente seguido por um outono em paz e, quem sabe, num programa Erasmus.

(Crónica publicada no jornal Público em 25 de agosto de 2017)

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