Lusa/Presidential Press Office Handout

|Do arquivo Público 17.07.2017|  Anteontem, o embaixador da Turquia junto das instituições da União Europeia fez publicar uma carta na qual defendia a reativação do processo de adesão da Turquia à UE, processo esse que ele considera ser “a força motriz do alinhamento da Turquia com os valores e as regras” europeias. Ontem, em Ankara, o presidente do país Recep Tayyip Erdoğan disse exatamente aquilo que precisaria de dizer se não quisesse a adesão da Turquia à União Europeia: prometeu que no momento em que o parlamento turco aprovasse a pena de morte ele assinaria a nova lei “sem qualquer hesitação” porque a Turquia precisa de “arrancar a cabeça” aos mentores do golpe de estado falhado de há um ano.

Esta duplicidade não é defeito, é feitio. Dizer para dentro o contrário do que se diz para fora é apenas aquela insinceridade de base que faz parte do manual de qualquer pretendente a ditador. O pior é que, do outro lado, a União Europeia transmite também uma atitude de indiferença às questões da democracia e dos direitos fundamentais que não pode deixar de encorajar respostas como a de Erdoğan. Porque a triste verdade é esta: que credibilidade externa pode ter a UE quando entre os seus estados-membros há governos que se comportam como o da Hungria e o da Polónia?

 

Na Hungria de Viktor Orbán são bem conhecidas as tentativas do governo para fechar a única universidade do país que não controla, dificultar o trabalho das Organizações Não-Governamentais (com regras decalcadas das que na Rússia foram decretadas por Putin) e criminalizar a mera presença de refugiados no território do país. Tudo isto se passa com a cumplicidade do maior partido europeu, o PPE, de que fazem parte o PSD e o CDS em Portugal, e a passividade do Conselho Europeu, onde estão representados os governos nacionais da UE.

Na Polónia, o líder político por detrás do governo, Jarosław Kaczyński, lançou-se numa ofensiva contra os juízes, a quem acusa de faltarem “princípios morais, moralidade profissional, e moralidade em geral”. De acordo com uma nova proposta de lei, o órgão de disciplina dos juízes polacos correspondente ao nosso Conselho Superior de Magistratura passará a contar apenas com juízes nomeados pelo poder político — e serão estes juízes, da preferência do governo, a nomear e a promover os restantes juízes.

Já há demasiado tempo que estas derivas vão contribuindo para esvaziar a credibilidade da UE, tanto no plano interno, como no externo. Agora chegou o momento em que elas se tornaram numa verdadeira ameaça existencial para o projeto europeu. Num momento em que o mundo se divide entre um pólo autoritário, centrado na figura de homens-fortes, e um pólo internacionalista, baseado na adesão a regras e valores comuns, os países da União Europeia devem demonstrar com clareza a sua pertença a este segundo pólo, que é o pólo do estado de direito e dos direitos fundamentais.

Isto não pode sequer ser um dilema. Se quiser sobreviver, a UE tem de pôr a sua primeiríssima prioridade, como mandam os tratados, no respeito pela dignidade humana, pelos direitos humanos e pelo estado de direito. Os governos da Hungria e da Polónia têm de receber a mensagem clara, enviada por todas as três instituições europeias — Parlamento, Comissão e Conselho — de que todas as suas relações dentro da UE passarão a ser pautadas pela resposta satisfatória às questões de direitos fundamentais. Desde uma candidatura a receber uma agência europeia até à celeridade na avaliação de um processo, há todos os dias dezenas de interações entre um estado-membro e a UE. Ora, um governo não pode esperar outra coisa senão que as suas pretensões quotidianas só possam ser avaliadas quando já não subsistirem dúvidas sobre a sua adesão aos valores do estado de direito — sem a qual, aliás, não teria sequer entrado na UE.

Esta será uma forma de pressão política que, por ser dirigida aos governos e não penalizar os povos, rapidamente será compreendida por Budapeste e Varsóvia. E até o senhor de Ankara, desconfio, dará rapidamente pela mudança de tom.

(Crónica publicada no jornal Público em 17 de Julho de 2017)

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