| Do arquivo Público 21.06.2017 | É solitário não se ser especialista instantâneo em incêndios por estes dias. Eu não sabia que vocês eram tantos na nossa vida: às vezes parece que por detrás de cada telemóvel e de cada teclado, de cada microfone e página de jornal, de cada câmara e em cada estúdio, há um especialista instantâneo em incêndios. A convicção de cada um é grande, as certezas fulminantes. Às vezes gostaria de fazer uma troca: ouvir-vos menos agora para ouvir mais os especialistas não-instantâneos (também conhecidos por “aqueles e aquelas que se deram mesmo ao trabalho de estudar e pensar prolongadamente sobre um determinado tema”) durante o resto do ano.
Mas não. Nós sabemos as regras do jogo. A sazonalidade dos fogos determina a dilatação do perímetro de especialistas e a multiplicação dos espécimes opinativos. São eles o preço a pagar por podermos ouvir também os especialistas não-instantâneos (ou, como eu lhes prefiro chamar, “aqueles e aquelas com quem se aprende qualquer coisa”) que estão cada vez melhores. Distingo-os à maneira possível aos pobres não-especialistas como eu: aquelas e aqueles com quem se aprende alguma coisa, além de não costumarem aparecer no resto do ano, são menos definitivos nas suas respostas, repetem muitas vezes que “é complicado” (para desespero dos entrevistadores) e têm, em geral, um ângulo ou abordagem que perseguem há anos, metodicamente: sabem que proteção civil não é idêntica a proteção ambiental, que o ângulo da desertificação não é o mesmo das alterações climáticas, que a prevenção e o combate não têm os mesmos princípios nem os mesmos objetivos, etc. Sabem que precisam uns dos outros para avançar no conhecimento e nos resultados.
Já o especialista instantâneo não precisa de mais ninguém. Fala ou escreve como se a sua torrente de opiniões apagasse os fogos. Quem dera. Mas a torrente de opinião muda de rumo todos os dias. No primeiro dia, choque e consternação. No segundo dia, escândalo e indignação. Ao terceiro dia, a sentença: nada vai mudar a não ser para pior, vai continuar a haver incêndios e mortes, o país é uma esterqueira. É aí que estamos agora.
Esta profecia tem a vantagem, para quem a profere, de não poder falhar. E, no entanto, eu acho que
, na sua certeza, ela está errada. Porquê? Como não-especialista que sou, procedo por analogia.
Em tempos Portugal tinha altíssimos níveis de sinistralidade rodoviária. Sou suficientemente velho para me lembrar de quando os cintos de segurança se tornaram obrigatórios, de quando os testes de alcoolemia se tornaram banais, de quando as rotundas começaram a pipocar nas vilas e cidades do país. Em cada um destes momentos houve especialistas instantâneos que proclamaram instantaneamente a inutilidade destas e outras medidas semelhantes. Não pensem que exagero: lembro-me de um colunista importante e definitivo que, então nas páginas deste jornal, jurava que continuaria a guiar em excesso de velocidade porque a culpa dos acidentes era dos outros condutores piores do que ele. Mas a verdade é que, por virtude de muitas pequenas boas medidas, a sinistralidade rodoviária em Portugal diminuiu e muito. Fala-se pouco disso hoje: deixámos de ser uma mancha negra nas estatísticas. Desenvolvemo-nos.
Pois bem. Há uma variável na equação dos incêndios em Portugal que nós podemos mudar: desenvolvermo-nos mais. E, contra a torrente opinativa, acredito que queremos mudar essa variável, e que o vamos fazer. Um dia haverá menos fogos incontrolados (sim, apesar das alterações climáticas: é uma questão de nos prepararmos melhor para elas) e muito menos mortes em incêndios em Portugal. Esse dia será devidamente anotado pelas estatísticas e talvez passe no fim de um noticiário, dando um nó na garganta a quem perdeu os seus amados nos fogos e nunca os esquecerá. Sei disto porque os especialistas não-instantâneos (ou, como lhes deveríamos chamar, os especialistas) têm dito muitas coisas sensatas e implementáveis. Quanto aos especialistas instantâneos (ou, para ser preciso, não-especialistas) deveriam talvez ouvir mais. Para não dizer, como é costume deles, que podem sempre ir limpar matas.
(Crónica publicada no jornal Público em 21 de julho de 2017)