Hoje que os estados são de novo realidades mais fluidas, o velho debate está a voltar. E a fazer as inevitáveis divisões: além de esquerda e direita, libertário e autoritário, há que saber: localista ou cosmopolita?
Há quem acrescente à tradicional divisão da política em esquerda e direita uma segunda divisão: libertário ou autoritário. Teríamos assim uma esquerda libertária e uma esquerda autoritária, bem como uma direita libertária e uma direita autoritária — tese que se verifica em muita gente que a gente conhece.
Os últimos anos levam-nos a acrescentar uma terceira distinção: localista ou cosmopolita. O localista pode vir em várias versões: nacionalista ou nativista, xenófobo ou patriótico, regionalista ou municipalista. Umas são mais simpáticas, outras mais desagradáveis. O cosmopolita também pode vir em várias versões: internacionalista ou europeísta, federalista ou globalista, multiculturalista ou altermundialista. Esta divisão, que muitas vezes depende de questões de gosto ou temperamento, ainda não está muito estabilizada. Assim sendo, ela percorre várias famílias políticas: para dar um exemplo não muito corrente, há ecologistas mais localistas (principalmente preocupados com a preservação de redes locais de abastecimento, por exemplo) e outros mais cosmopolitas, preocupados com a construção de movimentos contra o aquecimento global.
Claro que cada um de nós tem sempre um pouco de cada coisa (uma pessoa pode preocupar-se com as couves do seu quintal e com o estado do planeta ao mesmo tempo), mas a verdade é que a crise, global na sua origem, e europeia na sua expressão, tem levado muita gente a definir-se de um lado ou do outro, o que gera inevitáveis simplismos e mal-entendidos. Gente que concorda em quase tudo pode ver a conversa azedar quando se fala de ser mais pró-europeu ou anti-europeu, federalista ou soberanista. Estes termos (como escrevi aqui muitas vezes) definem mal o debate, mas a verdade é que o constrangem.
Interessante é que, como muitas coisas que julgamos contemporâneas, esta discussão não tem nada de novo. No século XIX, os conservadores eram imperialistas, os liberais eram nacionalistas e os socialistas eram internacionalistas. Essas divisões eram claras e assumidas, embora se tenham diluído no século seguinte, e tinham a sua razão de ser. Os conservadores achavam que os impérios eram a melhor maneira de preservar povos diferentes sob a alçada de uma mesma dinastia. Os liberais eram a favor do direito de auto-determinação, fosse para separar países (a Áustria da Hungria) ou para os juntar (criando a Itália ou a Alemanha). E os socialistas defendiam que a principal solidariedade dos trabalhadores era para com os outros trabalhadores, e por isso a sua organização e o seu hino era a Internacional, e os seus partidos meras secções “regionais” desse movimento global.
Quando os fascistas nasceram no século XX, aquilo que mais detestavam nos socialistas era precisamente o seu internacionalismo, o seu “cosmopolitismo desenraizado” que identificavam com a preponderância de judeus entre os líderes socialistas.
Mais do que qualquer vitória da nação, o século XX foi a vitória do estado, e a grande “questão internacional” do século XIX diluiu-se. As famílias políticas perderam os seus referenciais de origem. Mas hoje que os estados são de novo realidades mais fluidas, o velho debate está a voltar. E a fazer as inevitáveis divisões: além de esquerda e direita, libertário e autoritário, há que saber: localista ou cosmopolita?
(Crónica publicada no jornal Público em 01 de junho de 2015)