Não está em causa, como digo, a afeição que muito de nós temos pelos nossos clubes de futebol. O que está em causa é ter passado a ser natural quatro deputados da nação comentarem em exclusivo durante uma hora a atualidade desportiva, num programa de jornalismo não-desportivo, como se a instituição parlamentar não nos devesse também um pouco de consideração.
Quando era miúdo fui a um treino de captação no meu Benfica e ainda me lembro das duas vezes que toquei na bola. Infiltrava-me no estádio, com o meu primo, para ver jogos de borla. A paixão estendia-se ao hóquei em patins e às idas ao velho pavilhão da Luz.
Continuo a gostar muito de futebol, e a zombar de críticas pseudo-intelectualizadas ao futebol. Mas há limites para tudo.
Precisamente porque gosto muito de futebol, evito judiciosamente ver programas sobre futebol. É uma manha pessoal e intransmissível, não uma prescrição para o coletivo. Se há pessoas que querem ver gente a falar sobre futebol, e televisões que transmitem horas seguidas desses debates, posso viver com isso.
O problema é quando a coisa extravasa, e foi isso que aconteceu na semana passada.
Esta crónica nasceu quando liguei a TV para ver um dos programas de atualidade de que mais gosto, o Expresso da Meia Noite (SICn, sextas-feiras às 23h00). Estavam convidados quatro deputados à Assembleia da República. A primeira pergunta foi sobre a saída do treinador do Benfica, Jorge Jesus, para o Sporting. Achei que fosse para amenizar o ambiente, mas a segunda pergunta também foi sobre o mesmo assunto, e as outras daí procederam. Todo o debate foi sobre o Benfica e o Sporting.
Pensei: no dia em que isto acontecer, e ninguém protestar com isso, é porque estamos perdidos de vez. Cabe-me então protestar.
Não está em causa, como digo, a afeição que muito de nós temos pelos nossos clubes de futebol. O que está em causa é ter passado a ser natural quatro deputados da nação comentarem em exclusivo durante uma hora a atualidade desportiva, num programa de jornalismo não-desportivo, como se a instituição parlamentar não nos devesse também um pouco de consideração.
Não está em causa, como é evidente, a liberdade editorial. O que está em causa é que — no mesmo dia em que, para dar só um exemplo, a Grécia adiou pela primeira vez um pagamento ao FMI e o seu primeiro-ministro recusou uma proposta de acordo dos seus credores — um dos programas que mais serve para nos informar e ajudar a formar opinião sobre este tipo de acontecimentos decidiu dedicar-se exclusivamente a um tema para o qual existem milhentos outros programas que já ocupam toda a grelha televisiva.
Não está em causa, por último, a importância do futebol como fenómeno coletivo. Mas também aí tentei ficar atento a todo o programa para ver se alguma coisa se dizia sobre corrupção no desporto. Estávamos simplesmente na semana em que o presidente da FIFA se demitiu por causa de um enorme escândalo de corrupção no futebol internacional (valha a justiça, o programa anterior fora sobre o assunto). Mas não.
Estamos pois definitivamente condenados à monocultura. Basta acontecer algo de picante no futebol nacional para termos a ele dedicados todos os programas de futebol, todos os programas que não são de futebol, e as crónicas de jornal — como esta — criticando os anteriores.
Não vejo quem possa ganhar com isto. Quando o futebol invade tudo, até o futebol perde graça.
(Publicado no jornal Público em 08 de junho de 2015).
One thought to “Monocultura”
Ai o meu Benfica… mas mais importante, ai o meu país!
Longe de mim querer criticar as escolhas editoriais, mas também julgo ser um desperdício ter quatro deputados a discutirem futebol. Até as melhores mentes perdem a razão quando o assunto puxa à paixão futebolística.
Por sinal, sou um dos ditos jovens com curso superior que saiu do país a “conselho” do nosso primeiro-ministro, e fiquei alegremente surpreendido por ver o Rui a distribuir panfletos no fim-de-semana passado na Feira do Livro, o qual aceitei e li. É sempre bom ver um movimento político de cidadãos que também pensa nos jovens portugueses lá fora.
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