É preciso dizer alto e bom som: isto não é um jogo. Estamos a falar da vida e dos futuros de uma união monetária com 300 milhões de habitantes, numa União e num continente com mais de 500 milhões de pessoas. Estamos a falar da melhor hipótese de prosperidade partilhada, democracia e direitos fundamentais que construímos após os horrores indizíveis das guerras europeias. Brincar aos ultimatos neste continente é — não digo já de uma suprema irresponsabilidade, mas mais do que isso, de um dolo imperdoável.
Havia na paz de Versailles, após a primeira Guerra Mundial, um par de homens a quem chamaram “gémeos celestiais”. Eram um juiz e um banqueiro, ambos lordes ingleses, cuja missão era a de espremer a Alemanha, como então se disse, “até ela guinchar”. Ora, ficou registado que os dois lordes andavam sempre com um sorriso beatífico, em particular quando se podiam escudar num qualquer regulamento ou termo contratual para arruinar a Alemanha nas gerações seguintes sem perturbarem a sua consciência de estar a fazer o melhor “pelo contribuinte britânico”. A Alemanha foi arruinada, chegou uma nova guerra, e o contribuinte britânico acabou por ter de contribuir com os seus filhos para o campo de batalha.
Lembrei-me dos gémeos celestiais ao ver a deplorável atuação do comissário europeu Pierre Moscovici e do presidente do eurogrupo Jeroen Dijsselbloem, após o fracasso de mais uma reunião sobre a Grécia. Os novos “gémeos celestiais”, note-se, são ambos membros do Partido dos Socialistas Europeus. E contudo desempenharam ali o melhor papel de capangas ilustrados da direita europeia.
Toda a gente sabe que a substância de um acordo para estancar a crise grega é negociável, e que estamos neste momento presos por palavras. O eurogrupo quer “uma extensão do programa”, o governo grego quer um “programa-ponte”. Uns prometem flexibilidade, outros querem discutir as medidas caso a caso.
O que fazem então os novos gémeos celestiais? Com supostas justificações burocráticas, põem as coisas nos exatos únicos termos que garantem uma humilhação política para o governo grego se tentar procurar uma solução. Pior: utilizam uma linguagem desportiva para dizer que “a bola está agora no campo da Grécia”. Ou se humilha ou será punida.
É preciso dizer alto e bom som: isto não é um jogo. Estamos a falar da vida e dos futuros de uma união monetária com 300 milhões de habitantes, numa União e num continente com mais de 500 milhões de pessoas. Estamos a falar da melhor hipótese de prosperidade partilhada, democracia e direitos fundamentais que construímos após os horrores indizíveis das guerras europeias. Brincar aos ultimatos neste continente é — não digo já de uma suprema irresponsabilidade, mas mais do que isso, de um dolo imperdoável.
E o que é pior: a verdadeira razão para isto não está em nenhum dos argumentos burocráticos, financeiros ou jurídicos avocados pelos novos “gémeos celestiais”. A razão, bem comezinha, está em que os partidos no poder em alguns países europeus — a começar por Portugal e Espanha — têm medo de dar a entender que é possível ser eleito contra a austeridade e conseguir um acordo a nível europeu. É por isso que é tão aviltante ver socialistas europeus prestaram-se a este triste papel e seria interessante, por uma vez, ver se os partidos socialistas destes países têm coragem para falar com voz alta e firme contra esta vergonha.
Nas próximas horas ou dias o governo grego porá uma nova proposta em cima da mesa. Se forem de novo os interesses mesquinhos a prevalecer sobre o interesse geral europeu, a história julgará, com a severidade do passado, os “gémeos celestiais” do nosso presente.
(Crónica publicada no jornal Público em 18 de Fevereiro de 2015)