Sophia de Mello Breyner Andresen não foi só uma das maiores escritoras da língua portuguesa contemporânea. Foi ela quem mais perto esteve de um ideal clássico da poesia: o da realização material das palavras.
Quando tinha quinze anos, passei um Verão trabalhando como guia turístico no Panteão Nacional quatro dias por semana (ao quinto, ia para São Vicente de Fora), num grupo de adolescentes em “ocupação de tempos livres”. Com as gorjetas comprávamos discos de vinil na Feira da Ladra. Com o salário, comprei uma bicicleta. Ao fim da tarde acontecia-me subir a colina da Graça, pela travessa das Mónicas, junto à Vila Sousa, até ao miradouro. Não sabia que ali morava Sophia de Mello Breyner.
O Panteão Nacional era e é belo, e mais bela ainda a vista que se tem da sua cúpula. Mas em vão tentávamos interessar os turistas para a sua importância política. Quando eles se admiravam, sob a cúpula central, ao ver os nomes de Vasco da Gama, de Camões ou do Infante Dom Henrique, era com embaraço que explicávamos que aqueles eram cenotáfios: túmulos vazios. Nos Jerónimos é que estavam os cadáveres dos grandes nomes; para os Jerónimos iria Fernando Pessoa no ano seguinte. Depois passávamos para as salas laterais, onde estão escritores (João de Deus, Almeida Garrett) e presidentes (Teófilo Braga, Manuel de Arriaga, Sidónio Pais, Carmona). Os turistas mais atentos notavam a diferença entre o tempo de cargo que teve Sidónio (menos de um ano) e Carmona (quase 25 anos). E passavam adiante.
Só recentemente o Panteão ganhou a importância real de ter figuras que resumem virtudes ou corporizam ideas: a Coragem com Humberto Delgado, o Fado como voz e arte, com Amália Rodrigues. Assim, em maiúsculas, da forma um pouco desusada e empolada que é natural nos panteões. Mas talvez só com Sophia de Mello Breyner, que morreu hoje há dez anos, o Panteão atinja uma certa transcendência, ou uma transcendência certa.
Sophia de Mello Breyner Andresen não foi só uma das maiores escritoras da língua portuguesa contemporânea, muito comparável às brasileiras Cecília Meireles, que ela admirava, e Clarice Lispector, sua contemporânea (nasceram com meses de diferença e estrearam-se literariamente no mesmo ano). Foi ela quem mais perto esteve de um ideal clássico da poesia: o da realização material das palavras. Como explicar? A ideia de que as palavras sejam ao mesmo tempo como coisas e como luz, que tenham peso mas que tenham essência, e que ao serem ditas ou escritas transformem o mundo. A partir de hoje o Panteão ganha mais uma palavra: depois da Coragem e do Fado (que palavra para Almeida Garrett? a Paixão?), com Sophia vem a palavra Palavra.
Por isso muita gente a chama pelo primeiro nome, como eu fiz na última frase. Porque ao dizer-se “Sophia” se materializa não só uma pessoa, mas também uma ideia — não a de conhecimento, como traduzimos equivocadamente do grego, mas a de “sabedoria”.
Sophia é uma honra para o Panteão, é certo. Mas mais certo ainda é que ela se alegraria ao saber que, de vez em quando, rapazes e raparigas sobem a colina da Graça, passam junto à casa onde ela viveu e chegam ao jardim do miradouro encontrando hoje o poema que ela, tendo nascido no Porto (e sido deputada pelo Porto), escreveu para Lisboa, oferecendo à cidade um milagre com a sua palavra: “Digo «Lisboa» / Quando atravesso — vinda do sul — o rio / E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse /…/ Vejo-a melhor porque a digo /…/ Digo o nome da cidade / Digo para ver”.
(Crónica publicada no jornal Público em 02 de Julho de 2014)
3 thoughts to “Dizer para ver”
Pobre Sophia usada e morta de morte matada!
Pobre Sophia… não!
Pobres de nós q n a merecemos!
Quem preza as palavras como Coragem, Voz, Palavra, arte e Sabedorias …deprezando-as e às pessoas, na sua prática pessoal, interrelacional e, AÍ SIM, verdadeiramente Política…
…merece, para QQ pessoa decente, como para Sophia …o quê?!!!