A segunda nota é sobre a resposta da UE e dos EUA. É evidente que Putin quer punir a Ucrânia por esta ter escolhido o “Ocidente”. Como quem diz: podes sair de casa, mas eu fico com o que eu quiser. Do lado ocidental, a escolha é entre uma nova guerra fria — congelar os laços com a Rússia — ou uma nova guerra quente que ninguém quer imaginar.
Não gosto nada quando isto acontece. Na semana passada escrevi uma crónica sobre a Ucrânia, chamei-lhe “Já basta uma tragédia” (a outra é a Síria) e, quando o enviei, fiquei com a sensação de que tinha sido alarmista. Hoje dá a sensação de que afinal pequei por defeito e não por excesso.
Três notas sobre o que se está a passar na Crimeia.
A primeira é a histórica. Na semana passada aludi à Guerra da Crimeia, que apesar de anteceder a Iª Guerra Mundial em praticamente 70 anos, pode dela ser considerado precursora. O que se esquece é que a Crimeia, em si, foi apenas um objeto colateral dessa guerra. Ela foi combatida na Crimeia porque a França, a Grã-Bretanha e o Império Otomano assim o escolheram. O objetivo do Império dos Czares era combater essa guerra do outro lado do Mar Negro, auxiliando os eslavos e ortodoxos sob dominação otomana para poder chegar a Constatinopla, hoje Istambul, e conquistar a “segunda Roma” (sendo que tinham já a “terceira Roma”, Moscovo) aos sultões muçulmanos. Esse objetivo manteve-se. As outras potências europeias desejavam exatamente o contrário: não queriam uma Rússia que dominasse o Médio Oriente (e esta tensão prolongou-se durante a Guerra Fria, já com a URSS). A Crimeia era uma almofada (para os aliados) ou um trampolim (para os russos), não um objetivo em si — mas também por isso uma guerra que começou na Crimeia se expandiu por todo o Mar Negro, o Danúbio, o Cáucaso, e até o Báltico e, em alguns casos isolados, o Pacífico.
A segunda nota é sobre a resposta da UE e dos EUA. É evidente que Putin quer punir a Ucrânia por esta ter escolhido o “Ocidente”. Como quem diz: podes sair de casa, mas eu fico com o que eu quiser. Do lado ocidental, a escolha é entre uma nova guerra fria — congelar os laços com a Rússia — ou uma nova guerra quente que ninguém quer imaginar. Ao contrário de há cem anos, hoje há arsenais nucleares. Seria trágico que fosse agora, mais de 25 anos depois da queda do Muro de Berlim, que a Rússia e os EUA entrassem na guerra que se conseguiu evitar durante todo o século passado.
A terceira nota é sobre a própria Rússia. Esta posição de força esconde grandes fraquezas. Por muito nacionalismo que lhe sirvam na televisão, o povo russo vê para lá de Putin. As desigualdades são enormes, a oligarquia vive à grande e às claras, e não se pode comer gás natural: ele tem de ser vendido para algum lado. A Rússia, envelhecida e demasiado dependente das suas reservas de combustíveis fósseis, não se pode dar ao luxo de cortar com o resto da Europa. Putin está numa posição aparentemente sólida, mas isso é hoje, não daqui a meses ou anos. Não é de excluir até que a sua mensagem seja tanto para dentro como para fora. Como quem diz aos russos: não pensem em fazer o mesmo que os ucranianos. Mas Putin deveria talvez refletir que a tal Guerra da Crimeia, ou a Iª Guerra Mundial (ou, antes dela, a Guerra Russo-Japonesa de 1905), foram ocasiões em que um senhor da Rússia se expôs demais e a Rússia acabou mudando de senhor, num dos casos de forma rápida e inclemente.
Seja como for, a verdade é que começamos o ano perguntando-nos como foi possível que, há um século, a Europa tenha entrado em guerra tão rapidamente. E agora vemos como é fácil fazê-lo — e difícil, embora ainda possível, evitá-lo.
(Crónica publicada no jornal Público em 03 de Março de 2014)