Não é só que Medeiros Ferreira vai fazer falta. É que fazem falta mais pessoas como ele, à esquerda e à direita, nos Açores e no continente, homens e mulheres, novos e velhos.
Às vezes eu encontrava Medeiros Ferreira num debate e fazia para que saíssemos juntos. Aconteceu dar-lhe boleia para casa num par de ocasiões. A conversa começava sempre da mesma maneira: com a nota baixa que ele me deu num teste de História Política e das Instituições (do século XX) por uma fraca resposta minha a uma pergunta dele sobre as Nações Unidas. Foi merecida a nota, afirmava eu. Que exagero, foi certamente uma injustiça, retorquia ele. Serve esta história para concluir que, ao menos numa discussão com Medeiros Ferreira, quem teve razão fui eu.
Mas serve para mais algo, é claro. Para dar uma ideia da cortesia e sentido de humor com que Medeiros Ferreira tratava os ex-alunos e, imagino eu, todas as pessoas. Jamais se pensaria que no banco do lado, enquanto descíamos a Rua da Escola Politécnica, estava o inventor dos “três Ds” que viriam a ser as linhas diretrizes da Revolução do 25 de Abril — Democratizar, Desenvolver, Descolonizar (originalmente ele tinha acrescentado “socializar”). Ali não ia um senador da República; ia um sonhador da República. Os “três Ds” foram apenas uma das coisas que ele imaginou, como imaginou partidos, candidaturas, instituições, outros portugais, outras europas. Ter ideias era natural; gostava de ideias, nele e nos outros. O riso despontava e o famoso olho estrábico brilhava nesses debates, quando ouvia uma boa ideia, mesmo que não concordasse com ela — e enquanto travessamente começava a articular a sua contra-argumentação, com um certo sarcasmo em sotaque açoriano. Era bonito de se ver.
Não é só que Medeiros Ferreira vai fazer falta. É que fazem falta mais pessoas como ele, à esquerda e à direita, nos Açores e no continente, homens e mulheres, novos e velhos.
Não posso dizer que tenha sido sequer próximo de Medeiros Ferreira; fui apenas alguém que às vezes gostava de ficar a conversar com ele mais um bocadinho. Por isso talvez erre ao pensar que por detrás daquela alegria havia algo a que chamarei a “melancolia do patriota”. O patriotismo, pelo menos aquele com que me sinto confortável (simplesmente: amar o seu país), tem sempre algo de melancólico. Essa guinada, dizem, nunca dá tão forte como no exílio, quando as angústias da terra chegam multiplicadas por cem, e cada notícia má ou boa é bebida com sofreguidão. Não é difícil imaginar como a partir de Genebra, e escrevendo para o Congresso Democrático de Aveiro, os “três Ds” tivessem para Medeiros Ferreira tanto de analítico como de ansiolítico.
No regresso do exílio dá-se o confronto entre os sonhos sonhados e a prática política, com as suas injustiças e agressividade. Percebia-se — sabia-se — que Medeiros Ferreira também tinha passado por isso, não se deixando amarfanhar. E isso acrescentava-lhe mais um traço de “melancolia do patriota”.
E depois há o presente. Um presente que se parece muito com o passado. Um presente em que as angústias nacionais aparecem também multiplicadas. Um presente em que as pessoas se comportam como se não sonhassem já com o país.
Se eu pudesse ficar mais um bocadinho a conversar com Medeiros Ferreira, era deste presente que lhe falaria. E tenho a certeza que ele se riria e diria que eu estava de novo a exagerar. Espero bem que desta vez fosse ele a ter razão.
(Crónica publicada no jornal Público em 19 de Março de 2014)
3 thoughts to “A melancolia do patriota”
socializar é perfeitamente associal
todas as sociedades se baseiam nas castas
alguém tem de limpar a merda nas sociedades ass sociais
curiosamente tem muitos licenciados do medeiros ferreira
a fazerem isso
um estava em Delft
se calhar foi teu colega de curso
ai filho nã se parece nada com 75 em 75 o lixo nã tinha nada que se comesse
e tinhamos só três latões pó bairro todo
agora temos nove tá tudo cheio e inda temos os vidrões papelões
e curiosamente nem vive cá metade do que vivia em 75
casa com mais de duas pessoas por aqui
está alugada ou a romenos ou a brasucas