A mesma Comissão que tem sido menos ativa do que desejável a defender o artigo 2 — em casos de países da União em que o estado de direito está de facto em causa — foi demasiado ativa a desrespeitar o artigo 4, no caso português, por razões que nada têm que ver com os “valores da União”.
Vale a pena dedicar alguma reflexão à nota (supostamente interna) da delegação da Comissão Europeia em Portugal sugerindo que o Tribunal Constitucional português é um “legislador negativo” e responsabilizando-o, em caso de recusa das novas medidas de austeridade, por um segundo resgate a Portugal e pelo colapso do governo.
Para tentar entender a gravidade do que se passou, busquemos os tratados da União, como reformados por Lisboa. Sãobichos esquisitos, com algumas coisas boas e muitas más, mas para este caso os artigos relevantes são simples. O leitor interessado pode procurar na internet por uma versão pós-Lisboa do Tratado da União Europeia e conferir por agora os primeiros quatro artigos. Vai ver que não perde o seu tempo; afinal, estamos metidos nisto e informação é poder.
O primeiro artigo diz: os (agora) 28 estados-membros constituem uma União. Simples. O segundo artigo firma o primeiro compromisso substantivo desta União, dizendo que ela se funda “nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias”. O terceiro artigo enuncia os objetivos da União, dos quais o primeiro é promover os valores do artigo anterior (entre os restantes objetivos contam-se “um espaço de liberdade”, um “mercado interno”, o “pleno emprego”, etc.).
O artigo quarto estabelece três coisas importantes para o nosso caso: principio da igualdade dos estados-membros perante os tratados, respeito pelas suas “formas políticas e constitucionais” e obrigação de uma “cooperação leal e sincera” entre estes e as instituições da União.
Sei o que está a pensar: qualquer semelhança entre isto e a União realmente existente só pode ser uma brincadeira de mau gosto. E tem razão, só que não é uma brincadeira: é porque os governos e as instituições europeias se afastam destes valores que os cidadãos cada vez mais lhes têm (a palavra não é exagerada) raiva.
Parece claro, por exemplo, que a Comissão tem obrigação de respeitar as “formas políticas e constitucionais” do estado-membro. Antes disso, o estado-membro tem de respeitar os valores da União — de que o estado de direito faz parte. A única limitação possível ao artigo 4 (respeitar a constituição do estado-membro) é o artigo 2 (o estado-membro não respeitar a democracia, o estado de direito, os direitos humanos…).
Mas o mundo anda às avessas. A mesma Comissão que tem sido menos ativa do que desejável a defender o artigo 2 — em casos de países da União em que o estado de direito está de facto em causa — foi demasiado ativa a desrespeitar o artigo 4, no caso português, por razões que nada têm que ver com os “valores da União”.
Como é isto possível? Caros concidadãos, a culpa começa bem perto de casa. Desde que chegou ao primeiro plano da política portuguesa, Pedro Passo Coelho tem seguido uma estratégia de minar o consenso constitucional, que agora exportou para as instituições internacionais. O resultado foi este: Passos usa as instituições internacionais para alavancar a sua estratégia; Cavaco deixa-o fazer. Quem perde é o estado de direito em Portugal e a união de direito na Europa.
(Crónica publicada no jornal Público em 21 de Outubro de 2013)
3 thoughts to “Um caso exemplar”
A importância que a UE dá a Passos Coelho não me parece que seja mais do que a de papel de embrulho, portanto a influência que o mesmo terá de influenciar a UE, segundo o autor parece-me francamente exagerada. PC é apenas capacho da Srª Merkel e quejandos e, quando lá vai, parece “entrar mudo e saír calado”.
Esse relatório é não apenas inacreditável ao nível que o Rui refere, como é ainda, em termos jurídicos, de uma ignorância brutal. É que os TC são sempre legisladores negativos, e quanto a isso não há qualquer problema – a sua função é, precisamente, controlar negativamente os actos normativos do poder legislativo, i.e. têm a função de eliminar normas contrárias à Constituição. O verdadeiro problema verifica-se quando, em algumas sentenças, os TC assumem um cariz de “legislador positivo”, criando, de alguma forma, normas.
Isto que é relatado é a realidade do nosso dia a dia. Governo, insituições e até cidadãos comuns, todos os dias metem os pés pelas mãos conforme as conviniências e fazem hoje o contrário do que defendiam e fizeram dias, meses ou anos antes. Julgam eles, com razão comprovada pela nossa história recente, que os portugueses comem muito queijo que afeta a memória. Infelizmente é verdade para muitos eleitores, mas não para todos.
Sempre existiu e existirá esta cultura promotora da decadência social, política e económica, mas tenho para mim que, em Portugal, os grandes impulsionadores deste modelo da decadência foram aqueles deputados que sob o capuz do voto anonimizado pela Assembleia da República, se habituaram a ter um sentido de voto na Assembleia da República e depois, perante os eleitores e comunicação social, afirmam outro e convições políticos contrários ao voto exercido.
É certo que alguns, depois de desmacarados, se defendem que estavam sujeitos à “disciplina de voto” do partido, que numa democracia popular e na forma como é exercida só pode ser algo inventado por quem gosta de ditaduras.
Então qual é o partido cujos estatutos obrigam à disciplina de voto? Em que circunstâncias? Estes não defendem, antes pelo contrário, a liberdade de expressão, de submissão aos princípios ideológicos do partido e de respeito pelos representados?
Então e onde está a disciplina de voto perante o eleitorado e as promessas que fizeram nas campanhas eleitorais?