Quem quer ser acusado de vaidade por se devotar ao bem comum? Mais vale adotar uma posição de discreta passividade a partir da qual criticar a vaidade de terceiros.

Folheando ao acaso “Ricos e Pobres no Alentejo”, de José Cutileiro, encontro a seguinte frase sobre o poder local:

“A dificuldade em encontrar alguém disposto a aceitar a presidência da edilidade resultava de várias razões. Em primeiro lugar, a maior parte das pessoas considerava que os afazeres particulares preenchiam totalmente a sua capacidade de actuação e que a devoção ao bem comum era uma ficção inventada por quantos desfrutavam dos atributos externos do Poder e destinada a encobrir a sua vaidade. Em segundo lugar, devido à complexidade e multiplicidade dos problemas submetidos à Câmara, acreditava-se que o presidente precisava de muita diplomacia para não ferir as susceptibilidades de parentes e amigos. Em contrapartida, dado que era forçoso tomarem-se decisões independentemente das suas consequências de ordem pessoal, o indivíduo que ocupava o cargo ficava imediatamente à mercê das críticas que toda a gente, incluindo os amigos, se apressaria a dirigir-lhe”.

Estas observações têm quase cinquenta anos. Entretanto, muito mudou. O país passou de uma ditadura para uma democracia, e integrou-se na Comunidade Económica Europeia, agora União Europeia. Verificou-se um enorme aumento dos níveis de formação e qualificação dos portugueses. A localidade alentejana onde foram feitas as investigações antropológicas de José Cutileiro está agora junto ao grande lago do Alqueva e de lá é possível chegar ou sair usando estradas bem asfaltadas. O próprio autor daquele livro ingressou depois no serviço diplomático e hoje é um comentador bem conhecido na imprensa nacional.

Mas há qualquer coisa ali que não mudou certamente. Refiro-me ao primeiro considerando, o dos portugueses que não se dedicam à causa pública por estarem psicológica e culturalmente tolhidos pelo convencimento de que “a devoção ao bem comum era uma ficção inventada por quantos desfrutavam dos atributos externos do Poder e destinada a encobrir a sua vaidade”. Quem quer ser acusado de vaidade por se devotar ao bem comum? Mais vale adotar uma posição de discreta passividade a partir da qual criticar a vaidade de terceiros.

Atribuo a esta sucinta intuição de José Cutileiro uma grande importância pelo poder explicativo que tem sobre tudo o que se passa na política portuguesa, mesmo hoje. O fenómeno da “ficção do bem comum” gera, pelo menos, três efeitos: em primeiro lugar, desvaloriza ainda mais o conceito de “bem comum”, sucessiva e crescentemente sob suspeita de estar ao serviço de desagradáveis defeitos morais e pessoais; em segundo lugar, restringe a prática da política a um círculo de pessoas que não se incomodam com essa barreira psicológica, por saberem que “a ficção do bem comum” é ela própria uma ficção destinada a manter fora da política a maior parte dos tímidos e envergonhados que nós somos; e, em terceiro lugar, faz com que os políticos tenham interesse em serem eles próprios os principais desvalorizadores da política, pois sabem que quanto mais desvalorizada a política for, a tanto menos concorrência terão os políticos de ser sujeitos.

Juntando tudo isto, temos os ingredientes para as crises cíclicas a que foram sujeitos regimes tão díspares como o liberalismo, a Iª República, ou a nossa democracia. E estamos a observar uma materialização muito clara destes efeitos na charada em torno das eleições autárquicas deste ano, a que voltarei na próxima semana.

(Crónica publicada no jornal Público em 19 de Agosto de 2013)

One thought to “A ficção da “ficção do bem comum””

  • alexandre

    A homenagem justa a um Europeu, no Diário Económico:

    O António Borges para a não-esquerda foi sempre uma referência em macroeconomia e nas ideias que nos trazia sobre o modus empresarial em Portugal, ou seja daquilo que gostava de referir como centros de poder e práticas de management.
    No permanente e inacabado debate entre as mundividências de esquerda e direita, necessariamente que estabelecemos preferências e modelos de pessoas e ideias, ou porque nos desafiam seriamente as convicções, ou porque nos tranquilizam e confirmam a bondade daquilo que defendemos. O António Borges para a não-esquerda foi sempre uma referência em macroeconomia e nas ideias que nos trazia sobre o modus empresarial em Portugal, ou seja daquilo que gostava de referir como centros de poder e práticas de management.

    A sua frontalidade nestas matérias gerou nos corredores da não esquerda, e em parte nas elites económicas e empresariais, uma ambivalência de posições: a admiração genérica que sempre houve sobre as suas capacidades intelectuais, e a de expressar a complexidade da economia de forma inteligível nas suas inspiradoras palestras, contrastava muitas vezes com as reacções públicas negativas, e com os subliminares ataques àquilo que expressava.

    Habituado ao espírito livre e independente das aulas duma universidade, mas também aos corredores do poder e da influência, tornou a sua vida política complexa quando agia publicamente. Conviviam nele as duas perspectivas: a de um português que se fascinava com as respostas dos portugueses ao desafio da industrialização, da entrada na EFTA, do jogo democrático, da adopção da economia de mercado, e pela capacidade dos trabalhadores e gestores portugueses na aquisição rápida de competências, pelo sucesso na entrada na UE e no Euro, e recentemente com os reequilíbrios macroeconómicos patentes na evolução da balança externa e das contas públicas.

    Do outro lado da sua personalidade, surgia-nos uma pessoa que queria mudar o País com as lentes de um estrangeirado, habituado às sociedades anglo-saxónicas competitivas da destruição criativa, e de comportamentos de risco e de poupança. Detestava a ideia dos pick the winner feitos pelas políticas públicas e do Estado protector e manipulador. Elogiava sempre a capacidade de resposta da economia aos choques externos. Entendia Portugal inserido numa rede global com uma capacidade ímpar de triunfar, tal como o fez a título pessoal.

    Não poderia deixar de referir a sua simplicidade, determinação e visão sempre optimistas da vida, e do prazer que retirava do trabalho e da companhia dos que lhe eram mais próximos.

    Em Abril de 2008, o Negócios pela pessoa do seu director Pedro Santos Guerreiro, deu-me a mim e ao meu amigo Brandão de Brito o privilégio de inaugurar uma curta série de entrevistas à “tropa de elite” portuguesa: iniciámos com o António Borges. Uma homenagem é revisitar nesta entrevista o seu pensamento. Uma memória para quem acreditou que um País e as suas gentes nunca se abandonam.

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