Esta crise dos direitos fundamentais já aí está. A dificuldade está em que, dado o seu caráter proteico, é difícil aos cidadãos identificarem-na e encontrarem formas de a combater. Mas quando a imaginação coletiva se concentra numa causa, como sucedeu em Istambul, o movimento extravasa facilmente os acontecimentos iniciais.
Para quem acha que só economia é política, a Turquia será um caso bicudo. Não há país da OCDE que tenha crescido mais nos últimos anos: a taxa média de crescimento nos últimos três anos tem andado à volta dos sete por cento, o que é ainda mais notável se pensarmos que a economia dos parceiros europeus tem estado estagnada; a inflação é baixa em comparação histórica, o desemprego baixo em comparação geográfica.
Mas nem só de pão vivem os turcos; ninguém vive. Os turcos querem liberdade, qualidade de vida e respeito pelas pessoas. Há meia dúzia de dias, meia centena de turcos juntou-se para salvar um parque no centro da cidade de Istambul. Eram um grupo sortido de ecologistas, artistas e intelectuais, entre eles um cineasta turco que é deputado por um partido pró-curdo. Foram agredidos pela polícia. A resposta foi pronta: dezenas de milhares de turcos saíram às ruas em diversas cidades, de Ankara a Antioquia a Trebizonda. No estrangeiro, em qualquer cidade de imigração turca, ou até onde haja um número significativo de estudantes “erasmus” turcos, as manifestações de solidariedade sucedem-se.
O que se passa em Istambul, a sublime porta entre dois continentes, tem importância para o futuro da democracia e dos direitos civis no mundo árabe e na Europa. No mundo árabe, onde em grande medida a Turquia era tida como um modelo de convivência entre a democracia e o Islão, a revolta dos jovens turcos poderá ter um efeito encorajador para os jovens liberais, secularizados e esquerdistas do mundo árabe — que perderam a primeira batalha, mas não a guerra, contra os partidos religiosos.
A influência sobre a juventude europeia será mais indireta mas não será menor.
Em primeiro lugar, porque a juventude turca é uma juventude europeia: em cultura, em estilo de vida e em horizontes (a Turquia não faz parte da UE mas, como referido acima, os seus jovens participam do Programa Erasmus).
Em segundo lugar, porque a “primavera turca” não é como a primavera árabe: a Turquia não é uma ditadura, mas antes uma democracia muito degradada, onde os tribunais demoram anos a soltar um inocente da prisão (depois de à polícia, em geral, bastarem poucas horas para meter o mesmo inocente na prisão), o partido no poder faz discursos piedosos enquanto enriquece desavergonhadamente os seus empresários amigos, o desprezo pela cultura e pela diversidade é endémico, e — esta é uma característica geral das democracias degradadas — o grande partido da oposição é pateticamente ineficaz. Ou seja, a Turquia está mais próxima das nossas democracias do que das ditaduras árabes.
Em terceiro lugar, porque os protestos na Turquia são um dos primeiros exemplos da próxima crise europeia: a crise dos direitos fundamentais. Populações que já experimentaram uma democracia mais plena, que têm bom acesso à informação, cujas gerações mais jovens são muito educadas e que conseguem interligar-se em tempo real através da tecnologia não aceitarão facilmente que um poder tacanho imponha a sua vontade, na economia, na cultura ou na vida urbana.
Esta crise dos direitos fundamentais já aí está. A dificuldade está em que, dado o seu caráter proteico, é difícil aos cidadãos identificarem-na e encontrarem formas de a combater. Mas quando a imaginação coletiva se concentra numa causa, como sucedeu em Istambul, o movimento extravasa facilmente os acontecimentos iniciais. Veremos mais disto na Europa nos próximos tempos.
(Crónica publicada no jornal Público em 5 de Junho de 2013)
One thought to “#resistanbul”
“Para quem acha que só economia é política, a Turquia será um caso bicudo. Não há país da OCDE que tenha crescido mais nos últimos anos…” Talvez não seja tão bicudo quanto isso se pensarmos que a melhoria da economia aumenta a pressão social para uma maior democratização. É um efeito mecânico em que a economia é a causa e a democracia a consequência (e não o contrário). O que está a acontecer na Turquia é disso um excelente exemplo. E inversamente a degradação da economia provoca uma degradação da democracia, é o que se está a ver na União Europeia. Se nem só a economia é política, tem com certeza a parte de leão.