Seguindo a política nacional fico com a impressão de que ainda não saímos da primeira fase.Os líderes da oposição ficam à espera de uma abertura para a descida do ‘Deus ex machina’ que lhes vem resolver as coisas por eles. Pode ser o Presidente da República, ou a reunião do Conselho de Estado, ou uma zanga entre ministros, ou o povo que já não aguenta mais. Ou, ultimamente, o dr. Paulo Portas.
Durante um par de séculos, o teatro favorito dos portugueses era o chamado “gosto espanhol”, no qual as peças tinham personagens pecadores e personagens virtuosos e a intriga se ia complicando até ao momento em que Deus aparecia e os bons iam para o céu e os maus iam para o inferno. Podia ser Deus a resolver o assunto, ou os anjos, ou o diabo, ou simplesmente um trovão e um relâmpago, ou até um terramoto. Até ao dia em que houve mesmo um Grande Terramoto, e o futuro Marquês de Pombal proibiu esse tipo de teatro e instituiu antes o chamado “gosto francês”, no qual as personagens se safavam pelos seus próprios meios e a intriga tinha forçosamente de ser verosímil, sem intervenções sobrenaturais.
Seguindo a política nacional fico com a impressão de que ainda não saímos da primeira fase. Os líderes da oposição ficam à espera de uma abertura para a descida do ‘Deus ex machina’ que lhes vem resolver as coisas por eles. Pode ser o Presidente da República, ou a reunião do Conselho de Estado, ou uma zanga entre ministros, ou o povo que já não aguenta mais. Ou, ultimamente, o dr. Paulo Portas.
Mas com Paulo Portas, ele próprio, já estamos no teatro francês. Como ficou demonstrado no seu discurso de ontem, desde as primeiras palavras sobre o protetorado, até chamar “esses senhores” à troika, até se despedir dizendo que queria ir a tempo “de celebrar o dia da Mãe”, Paulo Portas tem o talento de fingir que é uma simples personagem no meio de uma intriga governativa que ele não domina, mas com cujas peripécias vai lidando conforme pode. Com algumas medidas do governo — as boas — ele concorda; quanto às más medidas ele encontrará maneira de ver se as consegue evitar.
Pode ser teatro talentoso, mas não deixa de ser teatro. E esconde duas coisas.
A primeira é que Paulo Portas não é uma personagem nesta peça: é um dos autores. Ele é responsável por todas as medidas do governo e, se não concorda com elas, tem o remédio fácil: votar contra no parlamento. Não o fazendo, cai a máscara da sua personagem.
A segunda é que, por mais que isto pareça uma farsa, é de uma tragédia que se trata. E uma tragédia no sentido antigo, em que toda a gente foi avisada para as consequências inevitáveis das suas ações, mas prosseguiu tomada pela arrogância.
Estamos no quinto ano desta crise e, ontem como hoje, o desemprego é o principal fator dela. O desemprego deixa as famílias sem salário e sem conseguir pagar as suas dívidas. Levando ao incumprimento, o desemprego agrava a situação de insolvência dos bancos, que agrava a vulnerabilidade dos estados. O desemprego, com a sua pressão sobre os subsídios e as prestações sociais, tem um impacto direto sobre a segurança social e o orçamento do estado — e um impacto indireto, através da diminuição da arrecadação de impostos.
E, no entanto, o governo anuncia decisões que, em larga medida, vão aumentar o desemprego, em troca de cortes em cuja eficácia já ninguém acredita. Toda a justificação teórica da austeridade que gerava confiança e traria crescimento foi avassaladoramente refutada. A França e a Holanda decidiram suspender a austeridade. Até a Espanha, que inventou o teatro espanhol, decidiu não esperar por uma salvação vinda do céu.
Só em Portugal os políticos continuam fazendo de conta que não é nada com eles, e caminhando em direção à catástrofe.
(Crónica publicada no jornal Público em 06 de Maio de 2013)
2 thoughts to “Deus ex machina”
Não esperem que a solução venha do Presidente da República. Esse é uma não existência. Manda umas bocas de vez em quando, mas depois foge e ninguém mais o vê ou ouve. São todos do mesmo clube.
Agora vai convocar o Conselho de Estado. Para quê? Para irem lá arengar umas coisas e depois ninguém ficar a saber para que serviu tão magna reunião? O Portas? É sem dúvida o mais esperto deles todos, mas é uma esperteza saloia. Pensa que lança areia para os olhos das pessoas. Ou então faz de nós todos parvos.
Quanto a Portas, mantenho desde o Dia da Mãe a teoria, muito “orwelliana”, que isto é pôr os pensionistas na temida Sala 101, aterrorizá-los, até que como Winston, supliquem: “façam-no a outros, não a nós!”. E em vez de 30 mil, talvez sejam o dobro ou o triplo os “requalificáveis”, para alívio dos grisalhos. É mesmo o tipo de manipulação de que este Governo parece capaz. Já agora, fui só eu quem estranhou o anúncio do negócio da Caixa Seguros ter sido encaixado entre o discurso incendiário do PM, no dia 1, e o anúncio dos cortes, no dia 3, em dia de meia-final europeia do Benfica?