A decisão do Tribunal Constitucional português foi nesse sentido pioneira, e se tivéssemos um governo digno desse nome, o próximo passo seria levar estas políticas ao Tribunal de Justiça da UE, por violação do artigo 3, número 3, do Tratado de Lisboa sobre “o pleno emprego e o progresso social”.

Raro é o dia em que podemos chamar à Madeira a Ilha da Liberdade. Quando podemos — graças ao esforço de um grupo de idealistas pragmáticos que organizou o Festival Literário da Madeira — não devemos desperdiçar a ocasião. Foram vários dias de encontros e perdoem-me se me concentrar somente na apresentação de um dos maiores pensadores vivos, o polaco Zygmunt Bauman, de 87 anos, que em apenas dez minutos e quatro datas resumiu a história europeia até hoje.

A primeira data, 1555, foi a de quando a Europa fez uma pausa nos massacres entre católicos e protestantes. Na Paz de Augsburgo, o imperador Carlos V encarou o problema determinando que cada reino deveria simplesmente pertencer á igreja a que pertencesse o seu monarca. “Cujus regio ejus religio”, foi a fórmula: por cada rei, a sua religião.

Na segunda data, 1648, a da Paz de Vestefália após a Guerra dos Trinta Anos, esse princípio foi adaptado e os estados soberanos passaram a ser o paradigma fundamental no território europeu: “cujus regio ejus natio”, ou seja, temos a nação que tiver o nosso monarca. Ser francês significava assim simplesmente ser súbdito do rei dos franceses — o início do processo longo que neutralizaria entidades como a Bretanha, a Sabóia, a Borgonha e outras.

A terceira data, 1755, é a do Grande Terramoto de Lisboa. Para Bauman, foi a primeira catástrofe moderna que criou o estado moderno. A natureza era imperfeita, ao contrário do que tinham pensado religiosos e filósofos, justificando-se assim que o estado estabelecesse o domínio dos homens sobre as coisas. A cada reino, a cada nação, a cada república, a todos os cidadãos — o seu estado. A cada estado, as suas razões e interesses.

Na quarta data, 1950, os europeus tinham acabado de se massacrar de novo, na IIª Guerra Mundial. Políticos e diplomatas decidiram começar uma administração transnacional das políticas económicas, para evitar que os interesses conflitantes dos estados os levassem de novo à guerra. A médio prazo, contudo, essa decisão teve outra consequência. Bauman finalizou a lição: hoje, o Poder e a Política estão divorciados. A política ainda é nacional (e estatal); o poder já não é. Se queremos uma esperança de preservação para a dignidade humana, temos de voltar a casar o poder e a política à mesma escala.

E hoje? Acrescento eu: faz um ano que entrou em vigor o Tratado Orçamental, resultado mais claro do divórcio entre Poder e Política. Feito fora (e contra) a União Europeia, votado pelos parlamentos nacionais sob chantagem, o Tratado Orçamental põe o poder fora do alcance da política. Definitivamente? Não podemos aceitar. A decisão do Tribunal Constitucional português foi nesse sentido pioneira, e se tivéssemos um governo digno desse nome, o próximo passo seria levar estas políticas ao Tribunal de Justiça da UE, por violação do artigo 3, número 3, do Tratado de Lisboa sobre “o pleno emprego e o progresso social”.

E na Madeira? O falatório na ilha era que, pela primeira vez,  um vereador se recusou a apertar a mão a Alberto João Jardim. O tempo em que a ele pertenciam as consciências individuais dos madeirenses (“cujus regio ejus populorum conscientiæ”?) parece estar a acabar. E o festival despediu-se em maré alta com um concerto de Sérgio Godinho, após o qual não foi difícil concluir que depende apenas da nossa coragem que a liberdade volte a passar por aqui.

(Crónica publicada no jornal Público em 10 de Abril de 2013).

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