Como assim? Não é Portugal uma democracia, com liberdade de expressão, partidos políticos e eleições livres? Sim. Mas essa banalidade esconde uma boa metade da verdade: a de um país que ainda não se livrou dos seus medos nem se sacudiu das suas estruturas senhoriais. Feito de cálculos, de clientelas e de escolhas afuniladas que se cristalizam num sistema político-partidário que não avança nem recua, não dá soluções e não permite encontrá-las.
Serve bem a título de exemplo (há muitos) o que se passou com o Partido Socialista nos últimos dias. Num primeiro passo, houve um levantar de entusiasmo pela possibilidade de António Costa ser candidato a líder do partido mas, acima de tudo, uma alternativa como chefe de governo, alguém que fosse um real contraponto a Pedro Passos Coelho. Num segundo, logo tudo esmoreceu numa opaca entente partidária, a que se seguirão negociações ninguém sabe muito bem para quê. Uma notícia do Sol sugere que entre as razões estarão a “entrada de 17 mil novos militantes”, principalmente das “distritais de Braga e Porto”, dos quais “há quem fale em ‘sindicatos de voto’” e “militantes que não têm atividade política e entram com cotas pagas”. Os partidos, em Portugal, são a praia onde vão morrer as esperanças.
E talvez seja melhor assim, porque quem espera não faz acontecer.
Dá-se assim o paradoxo de termos uma democracia, sim, só que ela não é muito democrática. Mesmo numa situação de emergência, parece impossível ultrapassar os biombos e os bastidores das lógicas partidárias. Em particular na oposição, à esquerda, os atores partidários não parecem minimamente interessados em abandonar os seus velhos hábitos de entrincheiramento. Nem a troika, o desmantelamento do estado social, a Constituição que dizem venerar os faz mudar de atitude. Seja ao nível nacional ou local: no Porto, apesar de todas as razões para mobilizarem a sociedade civil, os partidos de esquerda deixaram que a única novidade viesse da direita. Para quê mudar? Os partidos tornaram-se pequenas bolhas funcionárias, ocupadas em explorar o seu nicho de mercado, gerindo a frustração com o partido do lado, mas negando e recusando a frustração dos cidadãos com o sistema político como um todo.
Entre os cidadãos e o debate público, vão-se notando os sinais de uma certa lassitude, um desânimo profundo. Todos tentámos tudo: as petições na internet, as manifestações na rua, a indignação nas páginas de facebook. Começa a ser mais fácil discutir do destino de um cachorro ou da última futilidade de uma celebridade do que intervir eficazmente no futuro do país.
Não foi por falta de discutir alternativas — elas foram amplamente trabalhadas nos fóruns, nas assembleias e nos congressos, proclamadas em manifestos e livros, sugeridas e debatidas. Também não é por falta de qualidade de intervenção. Pela primeira vez em gerações, há uma sociedade educada, capacitada para a mudança.
É talvez pela ordem dos fatores: antes do problemas financeiro, económico ou social, Portugal vai ter de resolver o seu problema democrático.
(Crónica publicada no jornal Público em 04 de Fevereiro de 2013)
One thought to “Por uma democracia democrática”
Um país é algo que requer tempo.
Tempo para formar-se e tempo para construir uma ideia de si.
O que foi roubado a um país com tempo foi a notícia de uma ideia de si.
Todos os dias inúmeras criaturas lhe dizem quem é, o que foi, o que deixou de ser, o que deverá ser, o que não sabe que é.
A este ruido, uns chamam democracia, outros ausência de valores.
O que quer que seja é um triste cenário onde o país que somos permanece sem duvidar de si.