“Estamos a viver uma crise do sistema global; poderá Portugal ter um programa para si e para esta crise? Creio que a resposta é afirmativa e que esse programa passará por um regresso aos três “D” que fundaram a nossa 2ª República. Em primeiro lugar, descolonizar. Em segundo lugar, desenvolver. Democratizar, por último — ou deveria dizer por primeiro?”.
Na meia-noite de segunda-feira não haverá nada para festejar. A não ser que conseguimos sobreviver a 2012, e que 2013 se arrisca a ser pior ainda. Não havendo nada para celebrar, podemos apesar de tudo “cerebrar” esta passagem de ano. Esse é o desafio dos próximos parágrafos.
O ano que acabou foi o último em que se comemorou oficialmente o feriado que representa a República e o feriado que representa a auto-determinação nacional. Não foi por acaso. Mas o ano que aí vem poderá ser o do desmantelamento de uma parte importante do edifício construído após o 25 de abril, um desmantelamento intencional e premeditado. Os pilares desse edifício eram: uma noção do público como aquilo que pertence a todos (incluindo a democracia, como aquilo que é de todos, ou que “é todos”); a equidade como forma de conseguir um progresso social harmonioso; a solidariedade como a constituição da nossa comunidade nacional, forma de nos ajudarmos e mantermos juntos; a ação política como forma de recuperar o atraso nacional na economia e noutros domínios. Um a um, com mais ilusão ou realismo, com graus de sucesso variável, estes objetivos materializaram-se na educação, na saúde, na segurança social, na europeização do país, no conhecimento e na cultura, nos hábitos urbanos e nos costumes liberais. Durante trinta anos beneficiaram deles várias gerações de portugueses e residentes no território nacional, milhões de cidadãos, mesmo entre aqueles que não partilhavam do projeto saído da Revolução dos Cravos — que significativamente, não tem um nome como “abrilismo” ou outro: passou simplesmente a ser o nosso país, tal como o conhecemos e dele usufruímos nos últimos anos.
Há quem diga que esse era um Portugal “de esquerda”, fruto de uma constituição socializante. Tirando algum folclore da época, não era. Tratava-se apenas de um ideal para um Portugal moderno, atualizado para os direitos económicos e sociais de que entretanto já usufruíam os cidadãos da maior parte dos países desenvolvidos. Incluindo as políticas de habitação, de saúde, de emprego ou de educação, os desideratos da Constituição “socialista” do Portugal de 1974-75 são pouco diferentes da “Segunda Carta de Direitos” (Second Bill of Rights) que Franklin Roosevelt propôs aos americanos em janeiro de 1944, trinta anos antes. E uma maioria de gente nos países democráticos tem achado que estas são simplesmente a base de uma sociedade civilizada. Claro: é preciso reconhecer que houve uma minoria que lutou sempre contra esta visão do “Estado social”. Tirando partido da situação política, essa minoria está no poder em Portugal nesta passagem de ano 2012-13.
O ponto em que estamos
Um a um, o governo atual recusa os princípios que listei acima, com a exceção dos direitos civis e políticos, a que regressarei no fim do texto. De resto, desaparece o público, ficando somente o estado reduzido às funções policiais e judiciárias, medíocres e/ou mínimas (além dos serviços secretos, é claro, com os quais há uma familiaridade de alguns governantes, e uma opacidade em relação aos governados, que são ambas inquietantes). Em segundo lugar, a equidade é apenas vista como uma palavra que aparece na Constituição para criar empecilhos aos governantes. A solidariedade será substituída pela caridade, se possível desempenhada por terceiros, e reservada aos casos pessoais miseráveis ou desesperados. E, finalmente, a ação política executiva limita-se simplesmente a operar cortes, fechar privatizações e, usando a troika como pretexto, esvaziar as funções sociais do estado.
Além destes traços mórbidos, o nosso governo ainda tem uma trágica particularidade. Todos os governos da austeridade, por essa Europa fora, fazem o que têm a fazer contrariados ou renitentes. Calhou-nos em azar um governo inebriado pela austeridade. Inebriado pela sua crassa ignorância; inebriado pelo seu inusitado poder; inebriado pelas vantagens que as suas clientelas retiram da ação executiva. Quando o transe deste governo se esgotar, a nossa 2ª República estará francamente desfigurada, e é duvidoso que as feridas possam sarar. Se este governo levar todo o seu programa avante, não poderemos recuperar fácil nem rapidamente o ensino como promotor da equidade social, a saúde como serviço universal, a segurança social como uma garantia de planos para o futuro e autonomia pessoal, as empresas do estado como ferramentas de autodeterminação nacional. Muito pouco será reversível. Quase nada.
O ano de 2012 foi elucidativo em relação a isto, como em relação à tática política de avanços e paragens sucessivas, um “stop-and-go” que parece copiado dos manuais de ações politco-militares. A tática é simples: enunciar uma meta que deixa a população em estado de choque, caso haja oposição atribuir esse anúncio a um mal-entendido, e por último avançar para um objetivo paralelo. Não vale a pena fornecer aqui uma lista de ilustrações, da RTP à TAP, da TSU às “propinas no secundário”, dos casos de uma semana aos casos da semana seguinte. Os escândalos do ministro Relvas, as gaffes do consultor Borges, os estados de alma do partido de Paulo Portas, a cadência pausada do Ministro das Finanças ou a própria ignorância constitucional do Primeiro-ministro não mudam em nada a progressão deste governo.
O que significa isto
Para quem se define politicamente pela defesa do “estado social” (que é muito mais do que apenas o estado social mas, como foi visto atrás, é a coluna vertebral da nossa democracia — e como tal partilhada à esquerda, ao centro, e até à direita consciente do país que é o nosso) não há trabalho mais importante do que cerebrar 2013, ou seja, pensar o próximo ano, planeá-lo, avaliar as suas condicionantes e saídas.
Cerebrar 2013 inclui os seguintes passos (embora não se lhes limite). Entender a dimensão do que está a acontecer e o caráter excecional deste “processo reacionário em curso”. A preparação coletiva para para evitar o cenário de desmantelamento atrás descrito. Encontrar formas de o fazer com o contributo democrático e libertador de pessoas necessariamente diferentes, com tradições políticas e matizes ideológicos diferentes, de forma a que de um exercício de resistência ativa nasça uma renovação cívica do país.
Para que esse exercício tenha sucesso, só há uma precondição: acabar com as precondições. A oposição a este governo tem sido verdadeiramente minada por um ridículo jogo de pretextos, uma birra infantil entre atores políticos que representam os seus papéis como se ainda não tivessem percebido o que está em jogo. Enquanto todos falam de alternativas de governo com a boca, vão cavando as diferenças entre si com os pés. É preciso que entendam ninguém é tão distraído assim, e que este teatro kabuki não só não nos entretém como nos inquieta.
O tempo que estamos a viver, seja ele um estado de exceção, um interregno ou um fim de regime, é um tempo no qual a política habitual é uma política irresponsável. Ora a política habitual, em Portugal, ainda é feita por políticos “de carreira” em partidos que estão ora funcionarizados, ora clientelizados. Neste cenário, cada partido é como uma empresa cujo ramo de negócio é a gestão da frustração de cada eleitor com o partido que é vizinho do lado. As margens são menores mas vão dando para o gasto e para manter a casa. Qualquer desvio à norma é considerado um risco e severamente punido pelos guardiões do templo.
Devo por isso corrigir uma afirmação que fiz atrás, e adicionar outra. A correção é de que este governo não nos caiu em azar. Foi a pequenez e a desorientação da nossa política que lhe abriu a porta. A adição é para notar que o chamado estado social não apenas nasceu com a democracia como lhe é coextensivo; diminuir o estado social, num país como Portugal, será diminuir a democracia. Os direitos civis e políticos ficam sob pressão logo após os direitos económicos e sociais. Para sair desta situação, teremos de ampliar uns e outros.
Um futuro alternativo
Estamos a viver uma crise do sistema global; poderá Portugal ter um programa para si e para esta crise? Creio que a resposta é afirmativa e que esse programa passará por um regresso aos três “D” que fundaram a nossa 2ª República.
Em primeiro lugar, descolonizar: ironicamente, desta vez é para nós e não para os outros. Descolonizar significa libertar o país da troika e encerrar este interregno o mais depressa possível. A discussão entre os partidos de oposição sobre “rasgar o memorando” não é neste momento mais do que um bloqueador de conversa. Toda a gente entende que libertar o país da troika passará por uma negociação, e que uma negociação terá de ser bilateral para não significar a saída do euro e da União Europeia; mas há recursos para essa negociação que passarão por 1) deter a fuga de capitais para o estrangeiro e potenciar o aforramenti, através por exemplo de um sistema de títulos fiscais transacionáveis que permitirá ao contribuinte pagar impostos do ano corrente ou futuro; 2) preparar um perdão da dívida nos seguintes termos: a cada euro pago corresponderá um euro perdoado; não é muito diferente do haircut de 50% de que beneficiaram os gregos e permitirá aos parceiros europeus dizer que Portugal continua a ter vantagem em satisfazer a dívida; 3) cancelar o memorando, permitindo assim a Portugal transitar rapidamente para o guarda-chuva do mecanismo OMT anunciado por Mario Draghi em setembro passado, o que terá como resultado uma descida acentuada dos juros da nossa dívida.
Em segundo lugar, desenvolver. Desenvolver significa o contrário desta obsessão com a diminuição dos custos unitários de trabalho, e a sua substituição por um plano de qualificação e especialização da nossa economia. Alguns exemplos. Significa dar enfâse renovado ao setor cooperativo e associativo, para apoiar e proteger pequenas e médias empresa e profissionais a título individual. Significa criar um banco “bom” — um Banco de Operações Mutualistas — combinando os esforços do estado, das fundações e do setor privado, e que tenha nos seus estatutos o apoio aos setores económicos de mais futuro e valor acrescentado. Mas desenvolver não significa só cuidar dos mais fortes, nem crescimento sem valor social. Desenvolver significa cuidar das partes mais vulneráveis da sociedade, o que passar por aprovar um Estatuto do Idoso que (como no Brasil de Lula) confira direitos específicos, e recurso judicial para os obter, a uma camada crescente da nossa população. Ou significa ter como desígnio a erradicação da pobreza infantil no nosso país, através por exemplo da criação de um sistema de bolsa-escola.
Democratizar, por último — ou deveria dizer por primeiro? Nada disto é possível sem uma vontade cívica de renovar e reabrir a nossa democracia. Essa vontade cívica será sentida de forma diferente por cada um, mas passa certamente por superar a partidocracia sem prescindir dos partidos como pedras fundamentais do sistema político, mas criando plataformas e momentos que sacudam os partidos do seu torpor e do facilitismo da agenda mediática e dos nichos de mercado que encontraram. Essas plataformas e esses momentos estão aparecendo, mas para já de uma forma que é ainda demasiado débil para desestruturar o carreirismo, o clientelismo e o feudalismo autoritário da nossa política. Tenho sugerido que a experimentação com um sistema de primárias abertas a todos os cidadãos, a começar pelas eleições locais, poderia permitir a entrada da sociedade civil no processo monopolizado pelos aparelhos partidários, reforçando até a a própria militância partidária.
Democratizar, desenvolver e descolonizar significam também, no seu conjunto, que Portugal tenha ideias claras sobre a União Europeia. Sem democracia europeia a União será sempre um cartel de estados, mesmo que assuma a forma de um super-estado centralizado, do qual países como Portugal sairão sempre a perder. Por interesse próprio e por ideal, Portugal deve estar na primeira linha da exigência por uma democracia europeia, chamando até si, já em 2013 e 2014, os candidatos a presidentes da Comissão Europeia, para que eles nos exponham publicamente o seu programa. Em 2015 haverá provavelmete uma Convenção Europeia para reescrever os tratados, e antes disso terá de haver um grande debate nacional sobre o que queremos na Europa e para a Europa, um debate que seja feito com tempo para mobilizar os nossos aliados noutros países para criação de um Senado Europeu na qual todos os estados-membros tenham os mesmos direitos de votos. Esta é uma batalha que pode ser ganha; mas também podemos fazer nós próprios, a partir de 2016 por exemplo, um grande debate para a eleição dos chefes da nossa representação no Conselho. Portugal pode e deve inovar na União.
O dilema de 2013
Nada disto, é claro, será feito pelo atual governo. Por isso, seria bem-vindo se 2013 nos trouxesse um governo novo. Mas não se vê que governo novo poderá ser. E aí está todo o nosso dilema.
A posteridade julgará uma governo que está a desvirtuar a República, a destruir o estado social e a vender património de todos em negócios privados; um governo que mantém ministros que envergonham a ética pública e devem fazer algures uma cruzinha por cada jornalista que os atrapalhou e que caiu; um governo cujo número 2 não acerta numa conta, cujo número 3 se cala perante o desnorte da União Europeia e cujo primeiro-ministro desconhece a Constituição e, às vezes, o simples bom-senso; um governo que é já responsável pela maior calamidade económica e social das últimas décadas, que usa a troika como um pretexto para desmantelar as conquistas sociais da democracia; um governo que não pretende ficar por aqui e cujos efeitos se tornarão em breve irreversíveis.
Mas a posteridade julgará também aqueles que não fizeram tudo o que estava ao seu alcance para deter esta catástrofe. É isso que em 2013 devemos exigir a nós mesmos. Que encontremos, no respeito pelas diferenças e pela democracia, num espírito de transparência e inclusão, as vias de libertar o país deste interregno no mais curto prazo possível — ou pelo menos, de mostrar a este governo que há limites. Mas que façamos mais, e encontremos uma forma de chegar aos 48 anos do 25 de abril, àquele dia em que finalmente teremos tido mais tempo de democracia do que de ditadura, orgulhosos pelo que soubemos fazer em conjunto.
Ao pensar em 2012 lembraremos os que ainda estavam entre nós quando este ano começou. Miguel Portas. Bernardo Sassetti. Manuel António Pina. Fernando Lopes. Paulo Rocha. Ou que estavam perto de nós, porque eram como da família: Oscar Niemeyer, Antonio Tabbuchi. Sentiremos os que fazem dolorosamente falta a cada um de nós. Respiraremos fundo. E ao cerebrar a passagem de ano, contaremos com todos os que ficam para dobrar este cabo das tormentas e fazer dele um cabo da boa esperança.
One thought to “Vamos cerebrar 2013?”
Esta näo é a 2.a República, essa foi a da Constituiçäo de 1933. A ditadura, quer queiramos quer näo, foi república na mesma. “República”, com muitos monárquicos no poder, mas república na mesma.
O que vivemos desde o 25 de Abril é a 3.a República, consagrada na CRP 1976. Um eurodeputado deveria saber isto.
E é a 3.a República que está em perigo, porque os neoliberais querem reinstalar a 2.a, pois.