Foi por isso que há quatro anos escrevi com tanto entusiasmo e respeito sobre Obama e a sua vitória nas eleições americanas. Bastaria que ele fizesse estilhaçar o cristal da “guerra de civilizações” para que tivesse valido a pena. Obama fez isso e mais.

Esta parte próspera de mundo, a que chamamos gulosamente de “o Ocidente”, mas que é apenas o Atlântico Norte, onde residem 15% da população e 60% da riqueza mundial, gastou a primeira década deste século numa obsessão com a “guerra de civilizações”, e está a caminho de gastar a segunda década do século com uma obsessão pela austeridade.

A “guerra de civilizações” levou a duas guerras, milhões de refugiados, centenas de milhares de mortos, uma chocante insensibilidade perante a tortura e o sequestro — e ao desperdício de talvez dois biliões de dólares que, se empregues noutras coisas, teriam mudado o mundo para muito melhor. A obsessão da austeridade vai pelo mesmo caminho: já há quem peça mais cinco anos de esforços, mas ache normal perder-se 5% de PIB, ter-se 15% de desempregados e metade dos jovens a querer emigrar. A continuar assim, lá para 2020 teremos perdido bem mais de 2 biliões de euros (sem contar com os 3 a 4 biliões que renderia a emissão de eurobonds) que, se bem empregues, teriam mudado o mundo para muito melhor. E não é que o mundo não tenha desafios, da desigualdade às mudanças climáticas.

Não é também que os problemas do terrorismo (na primeira década) e da dívida (na segunda) possam ser negados. O problema é que eles se cristalizaram em consensos irrazoáveis, escorados em obsessões oportunistas e na irresponsabilidade dos líderes políticos. Um consenso irrazoável é uma coisa muito perigosa. Foi um consenso irrazoável a década de Bush nos EUA. Está a ser um consenso irrazoável a década de Merkel na UE.

Foi por isso que há quatro anos escrevi com tanto entusiasmo e respeito sobre Obama e a sua vitória nas eleições americanas. Bastaria que ele fizesse estilhaçar o cristal da “guerra de civilizações” para que tivesse valido a pena. Obama fez isso e mais: aplicou o maior programa de estímulo à economia em décadas, expandiu um sistema de saúde a milhões de americanos, e começou a inverter (no Supremo Tribunal e no exército) o predomínio conservador nas questões morais e de direitos individuais.

Obama foi uma lástima nas questões de segurança e do estado policial: nos drones, nas escutas e no desrespeito pela proteção de dados Obama foi tão mau quanto Bush. Aí, a culpa é dele (não ter fechado Guantánamo foi culpa do Congresso). Tal como é culpa dele não ter ido contra o outro “consenso irrazoável” que nos tolhe: o de que os bancos têm de ser resgatados mas não podem ser nacionalizados.

Mas, tal como é, Obama ainda é um obstáculo ao consenso irrazoável da austeridade a todo o custo, razão pela qual a economia dos EUA tem resistido bem. E para quem acha que ele não é progressista ou de esquerda, tenho uma pergunta: que governante, neste Atlântico Norte, o é mais do que Obama? Com a possível exceção de Jens Stoltenberg da Noruega, não vejo ninguém. E se compararmos Obama com o reacionarismo vigente no seu país, a resposta ainda fica mais clara.

A reeleição de Obama, a acontecer, será uma excelente notícia. Só não tenho escrito tanto sobre estas eleições por uma razão: há quatro anos, os EUA de Bush eram o maior perigo para o mundo; agora, o maior perigo vem do consenso irrazoável na UE — e parece não haver eleições que o resolvam.

(Crónica publicada no jornal Público em 05 de Novembro de 2012)

One thought to “Contra o consenso irrazoável”

  • augusto Küttner de Magalhães

    Caro Rui

    Uma vez mais totalmente de acordo. De facto Obama falhou em muitas coisas. e deram-lhe antes o Premio Nobel da Paz, para não falhar!!!!
    Mas se o outro Senhor fosse eleito , hoje, pior seria!!!!
    Logo viva o OBAMA.

    Que até já nem sabe se a Europa existe……

    E terem a tonteria de dar um Premio Nobel da Paz à Europa para ver se “isto” se conserta, é tão disparatado, como hoje , estar em Lisboa a Sra. Merkel, por nao haver um ESTAFERMO, UM!!! só um , Durão, ou todos os outros que recebem salario ao fim do mês para fazer de conta que representam a Europa!!!!!!!!nesta Desunião Europeia que possa fazer o lugar dela!!!

    abraço

    augusto

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