Se há coisa em que todos os partidos colaboraram nos últimos anos foi na domesticação do parlamento. Os deputados podem ser mais ou menos bem preparados tecnicamente, mas eles servem de correia de transmissão das direções partidárias.
Dizer que a maioria está neste momento em dissonância cognitiva é pouco: é uma trissonância, uma cacofonia cognitiva. Vem um ministro — precisamente Miguel Relvas, PhD — e diz que “faltam vinte meses para acabar o programa de ajustamento”. Mas logo chega o primeiro-ministro e diz que é preciso refundar o programa da troika. A razão é simples: Pedro Passos Coelho não quer viver sem a troika, que lhe dá a cobertura de que ele precisa para o seu projeto de proclamar um dia a República Minimal Portuguesa. Paulo Portas tenta mudar de assunto, ou fingir que não é nada com ele — afinal, que quer ele, preservar alguma coisa do estado ou desmantelá-lo? é um conservador ou um neoliberal? um institucionalista ou um revolucionário? — , mas é corresponsável de tudo o que acontecer ao país enquanto este governo estiver no poder.
Essa é a parte da trissonância cognitiva. Agora passamos à cacofonia.Chegamos ao debate na Assembleia da República sobre o orçamento e o quadro é confrangedor: uma bancada parlamentar que, em grande parte, sabe que os cenários previstos pelo orçamento são completamente irrealistas e não acredita que seja possível implementar o plano do governo.

E, no entanto, como uma matilha de autómatos ululantes, estes deputados vaiam em coro, interferem com os discursos da oposição, repetem-se em apartes despropositados. Duvido que consigam ouvir sequer o que está a ser dito, mas não importa. Estão a picar o ponto, como farão mais tarde quando aplaudirem, de pé, mecanicamente, as palavras do primeiro-ministro.

Causa uma sensação de irrealidade assistir a isto. Antes fosse.

Se há coisa em que todos os partidos colaboraram nos últimos anos foi na domesticação do parlamento. Os deputados podem ser mais ou menos bem preparados tecnicamente, mas eles servem de correia de transmissão das direções partidárias.

Isto, evidentemente, viola a Constituição, que é bem clara no seu artigo 155: “Os Deputados exercem livremente o seu mandato”. Todos os partidos — incluindo aqueles que são estrénuos defensores da Constituição — inventam atalhos para poderem espezinhar este princípio constitucional: retaliam sobre os deputados nos seus órgãos internos, ou ameaçam que os impedirão de chegar às listas nas próximas eleições, ou alegam que a especificidade do seu partido implica que estejam sempre todos os deputados de acordo. Por vezes, aparece uma luminária que acha que se deve “conceder” liberdade de voto umas vezes, mas não outras. Os argumentos até podem ser válidos, mas antes disso é necessário responder à pergunta: como se sentem violando a Constituição, interrompendo o vínculo que ela estabelece entre a soberania popular e a liberdade dos deputados, sequestrando-o para efetivo controlo das direções dos partidos?

O pior é que toda esta gente, ao tomar posse, jurou a Constituição — jurou respeitá-la e fazê-la cumprir. E no entanto falam (em público) de processos disciplinares ou (em privado) de retaliações sobre outros deputados como se violar a Constituição e renegar o juramento fosse coisa pouca.

E eis-nos chegados a uma situação em que uma maioria de deputados é chamada a votar um orçamento que sabem ser iníquo e irrealista. Mas se algum deputado levantar a cabeça, ela será devidamente reafundada. Com um aplauso em pé, e simultâneo.

(Crónica publicada no jornal Público em 31 de Outubro de 2012)

2 thoughts to “A reafundação

  • Ricardo

    E o maluco era o Alberto Joao por querer reduzir a Assembleia Regional a um representante por grupo político… 😉

  • Artur Pires

    Gostei muito de ler a sua caracterização dos autómatos ululantes da Coligação, mas creio que a sua crónica ficou incompleta; então e os autómatos despudorados do PS? Uma bancada que, sem o mínimo pudor, critica a coligação, esquecida que, se a cura é má, a doença foi contraída pelo PS, que deixou o país num lindo estado. (Como a descolonização, que é atribuida ao governo pós-25 de Abril, mas ninguém se lembra que foi o resultado da colonização pré-25.) Uma bancada que critica mas não quer que o governo caia, para que faça todos os cortes impopulares de que o próximo governo (daqui a dois ou dez anos, inevitavelmente PS) tenha de os fazer. Então e os autómatos viajantes no tempo do PCP? Vieram diretamente de 1935 e ainda não acertaram os relógios, continuam a acreditar na estatização do país e não perceberam que a URSS e a RDA são passado. E os autómatos antisociais do BE? É uma bancada contra tudo o que a sociedade quer, contra o parlamento, contra a economia, contra-contra.
    É verdade, a AR é um triste espetáculo, mas a pantomina não está só do lado direito.

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