A nossa democracia só poderá evitar repetir as decadências do passado se conseguir abrir-se à sociedade. Só que, nesse campo, o nosso regime está a fazer um péssimo trabalho.

 Esta série de crónicas parte de um pressuposto: o de que o regime democrático português tem sido desvirtuado. Começámos por um paralelo histórico, pois as duas anteriores tentativas de regimes análogos em Portugal (o liberalismo e a Iª República), com todos os seus defeitos e diferenças, começaram também pelas melhores intenções constitucionais e acabaram presas do clientelismo, do feudalismo político, e de partidos políticos hierárquicos, fechados e a certa altura ideologicamente vazios, pois serviam apenas de entrepostos de distribuição de lugares e de favores.

A questão aqui é: será mera coincidência qualquer semelhança com o presente? Na minha opinião, há uma diferença enorme. Costuma dizer-se, não sei se com razão, que nesses regimes anteriores a sociedade portuguesa era menos desenvolvida do que a política portuguesa. Mas no pós-25 de abril, passa-se certamente o contrário: a sociedade é mais desenvolvida (no sentido de mais qualificada, mais educada, mas diversa e mais criativa) do que a política. A nossa democracia só poderá evitar repetir as decadências do passado se conseguir abrir-se à sociedade. Só que, nesse campo, o nosso regime está a fazer um péssimo trabalho: o clientelismo, o feudalismo político, a desqualificação e o fechamento da política são os mesmos de antes.

Nas duas crónicas seguintes fiz propostas de democratização da política local (com o exemplo das primárias abertas na esquerda do Porto, que está aí para ser usado e aproveitado) e na política europeia, pois sem um debate sobre a estratégia nacional na União (concomitante com a proposta de eleição para a representação permanente no Conselho Europeu, que é neste momento uma câmara legislativa sem legisladores eleitos) não é possível pensar o futuro do país.

Convenhamos, no entanto, que o coração do problema está noutro nível: o do parlamento e o dos partidos.

Uma reportagem recente de Pedro Coelho para a SIC (sobre os deputados-advogados no ativo), e outra de Miguel Carvalho para a Visão (sobre a biografia política de Miguel Relvas) podem ser um bom ponto de partida para descrever o que se passa. Pedro Coelho encontrou um parlamento em que mais de metade dos deputados parecem dedicar mais tempo e esforço aos seus negócios do que aos negócios da nação; grande parte destes são advogados que não declaram os seus clientes por sigilo profissional (que se sobrepõe assim aos interesses gerais da República em ter legislação feita em boas condições de transparência e integridade). Mas se estes forem como o Miguel Relvas que a reportagem de Miguel Carvalho encontrou, tampouco há muita legislação a sair daquelas cabecinhas: Relvas esteve seis anos sem dizer uma palavra no plenário da Assembleia, e um ano em que foi consultor de dezasseis empresas.

Como sabemos, muita da nossa legislação é feita pelos escritórios de advogados, e às vezes desfeita também (pois estes conhecem a lei e os buracos da lei), e por fim fatalmente refeita. Em Portugal não há lobistas porque não é preciso. A arquitetura dos galinheiros é desenhada por empresas de raposas.

A isto poderíamos acrescentar que os partidos impõem a disciplina de voto à revelia da Constituição, o que deveria ser uma vergonha nacional, porque significa que os deputados que têm exclusividade também não são mais livres: se levantam ondas, não estão nas próximas listas eleitorais.

De forma que estamos perdidos se não conseguirmos duas coisas que deveriam ser simples: deputados que façam aquilo para que foram eleitos em exclusividade (com o apoio de serviços técnicos parlamentares de alta qualidade) e que depois votem em total liberdade. Mas para chegar aí deparamos com outro nível do problema: os partidos.

(Crónica publicada no jornal Público em 30 de Julho de 2012)

7 thoughts to “Uma refundação democrática? (4)

  • Francisco

    Caro Rui Tavares

    Tenho acompanhado o seu trabalho jornalístico, cívico e como deputado no Parlamento Europeu. No geral, concordo e considero brilhante a sua acção.

    Apenas estou a escrever para que saiba que há muita gente que lê e ouve o que o sr diz.

    Você encarna o espírito inicial do BE, uma corrente de opinião chamada Politica XXI defendia ideias muito interessantes, em minha opinião e integrou-se no BE, o sectarísmo das correntes maioritárias no BE destruíram a esperança da renovação da Esquerda em Portugal.
    Tenho muita pena que no futuro se perca todo o trabalho que tem desenvolvido, se não voltar a ter acesso a um parlamento .
    Você agora tem muitas responsabilidades para todos aqueles que admiram o seu trabalho, não os traia como o BE os traiu. Aqui vai uma atrevida mas sincera opinião, como independente, não recuse qualquer oportunidade de ser útil à unidade das esquerdas, seja à sombra de que bandeira for… incluindo o PS

    Bem haja pelo seu trabalho e atitude exemplar. Partilhamos os mesmos valores de justiça e fraternidade da esquerda não dogmática, por isso posso dizer:
    Com amizade
    Francisco

  • $4$º A sério? Isto é a refundação dos morangos cum sucre?

    Em Putocale não há lobbystas? lobsters não há muitas, mobsters há umas dúzias de milhares em feroz concorrência

    Agora se não há gente que move influências, que cala ou deixa falar
    Pequitos Rebelos e outros da mesma terminação

    Isse de ver na sociedade civil que produziu e alimentou a sociedade mais politizada com bastos exércitos de recrutas e oficiais milicianos é ela própria uma sociedade de lobies e bobie’s

    E já o é antes do regime novo que cai de velho

    é assis um novo mito sebastianista

    dos nevoeiros emergirá uma hoste de cavaleiros impolutos
    que em demanda do santo graaal

    nos livrarão de todos os dragões e vice-reis do Norte e do Sul

    Por acaso se isto funciona por simpatia já funcionou no norte…

    se a taxa de mortalidade aumenta com cada refundação democrática

    bora nisse

  • Se bem me lembro....é um pouco repetitivo como a refundação (now in Tri-Di)

    Pedro Coelho…o senhor dos passos perdidos aparentemente encontrou um parlamento em que mais de metade dos deputados parecem dedicar mais tempo e esforço aos seus negócios do que aos negócios da nação; se bem me lembro já vem de longe e nenhum independente se insurgiu com o sistema

    que tal como o universitário vive de amigos que têm amigos que têm empresas de importe-se ou esperte-se…de manutenção de vasos de flores …de jardinagem de cortes de papel

    como os antigos governadores civis…vindos da vida militar ou doutras fratrias ganhavam uns terrenos ou uns andares por se preocuparem com os interesses da nação

    grande parte destes são advogados (em pareceres ganhou muita gente dos primeiros governos constitucionais as suas contas na banca algures, se fossem independentes não seriam sujeitos às mesmas pressões e $$$$$’s?)

    que não declaram os seus clientes por sigilo profissional (que se sobrepõe assim aos interesses gerais da República em ter legislação feita em boas condições de transparência e integridade)….não é por ter boa legislação que se consegue …enfim tem perfeita razão moço vamos refundar isto com pessoal que ganhou o eurromilhões e não precisa de dinheiro extra

    Nem todas as pessoas têm um sentido democrático das coisas, gente despojada como os pais da república (desta)que nada tinham antes de chegar ao poder e agora têm uns barracos e uns pés-de-meia rotos

    Um Xerife ou Juiz eleito na américa que fosse naturalmente incorrupto, só em solos turfosos…
    O pH baixo conserva incorruptas as espheras do phoder..
    e que depois votem em total liberdade….
    e é gente sem passado nem ligações?

    mas vamos importar 230 Álvaros?
    bolas nem aguentamos um…
    até o queríamos estrafegar antes das relvas…

    Essa gente que não cede a interesses é à prova de bala?
    São de Krypton?
    O último que resistia aos interesses jogando-os uns contra os outros
    também não deixou boa memória

  • 4ª....e última fundação em komplex d'elektra

    Como se vê, não há gente sem laços ou que deixe os seus interesses próprios serem diluídos no interesse do grupo alargado.
    E geralmente o grupo alargado não se estende à totalidade da população.
    Quod erat demonstrandum.
    Finis Cinis.

  • Augusto Küttner de Magalhães

    A refundação da Democracia

    Rui Tavares, no Público, por norma escreve com frontalidade, o que muitos, também políticos dificilmente o conseguem fazer. Na sua crónica quarta, sobre o título acima referido, com muita acuidade fala sobre a nossa democracia, a interna, a portuguesa, e os partidos.
    Claro que tem toda a razão, e convenhamos que o que temos hoje, cá, não é mau, é péssimo, lastimoso. Sendo que para termos uma verdadeira democracia e não estarmos a passos rápidos de um qualquer sistema muito pior do que este, muito tem que passar a ser diferente, a começar e a acabar nos Partidos Políticos, todos, todos, até os que talvez para disfarçar, se intitulam de Movimentos.
    Fazendo referência ao “coração do problema: o Parlamento e os Partidos”, refere Rui Tavares duas reportagens, uma da SIC e outra da Visão, e: “O Parlamento tem mais de metade dos deputados que parecem dedicar mais do seu tempo e esforço aos seus negócios do que aos negócios da nação; grande parte destes são advogados que não declaram os seus clientes por sigilo profissional (que se sobrepõe assim aos interesses gerais da Republica em ter legislação de transparência e integridade). E tampouco há muita legislação a sair daquelas cabecinhas: Relvas esteve seis anos sem dizer uma palavra no plenário da Assembleia, e um ano em que foi consultor de dezasseis empresas, e…muita da nossa legislação é feita pelos escritórios de advogados, e às vezes desfeita também (pois estes conhecem a lei e os buracos da lei) e por fim fatalmente refeita.
    “Para além dos partidos imporem disciplina de voto, e se os deputados não obedecerem, na próxima legislatura estão de fora.”
    Ou seja, a Democracia neste País, como já é de todos sabido está doente e gravemente. Os interesses em defesa do País e da População são tudo, menos importantes. Em primeiro, em segundo e em terceiro lugar há que defender os Partidos, os seus chefes, os seus seguidores, os seus clientes. Isto também é nos é dito – tem anos – por Medina Carreira, que não é politico, e que não precisa dos políticos para nada.
    Este é o estado de podridão quase absoluta da nossa democracia, e se não houver uma viragem de 180º, não vamos lá. Ainda para mais que a opinião pública, que só não a publicada, e esta também, tem – temos – péssima impressão da classe política, o que é percetível em tudo não só nos cometários lidos e ouvidos, como na forma como quase nos afastamos de quem é profissional da política.
    Já chegará de podridão organizada e de tantos conhecida, em proveito de uns poucos, sempre os mesmos, que entre si rodam e voltam a rodar.
    Ou mudam os Partidos, o Parlamento, mas essencialmente as atitudes de todos e de cada um, ou não vale continuarmos distraidamente a queixarmo-nos do descalabro a que chegamos, porque assim não vamos “dele” sair. O problema está detetado, provado e comprovado, mas claro que todos os instalados no Parlamento, nas mordomias politicas e cargos inerentes, não vão resolver algo que os possa excluir, que os exclui, dado que lá se vai o seu – deles – Poder, o seu deles, Dinheiro.
    Não será necessário tudo partir, mas algo de muito diferente tem que acontecer, e talvez tenhamos que ver 180 deputados diferentes, que nunca lá tenham andado, que não sejam familiares dos que por lá andam ou andaram, não sejam amigos, e também que não se tenham formado nas juventudes partidárias, tudo diferente, tudo com mérito, capacidade e competência! E depressa! Será a única forma de isto ir começando a recuperar! E o mesmo em Autarquias, e em tudo de cargo políticos e públicos!

    Augusto Küttner de Magalhães

    Agosto de 2012

  • Na sua crónica do Vº dos Brasis ou quinto da impostura sobre o bosso ouro e ouropéis

    Não era mais fácil os descontentes mudarem de país?
    Na ucrânia deu um jeitão…
    A 100 mil por ano…em 20 anos ficamos só com 6 milhões
    os outros morrem a 100 mil por ano…
    e os putos que vão nascendo nascem na roménia

    é o boto com os pés …um boto imemorial dos putosgoese e portucalinas há 900 anos em marxe…

    Augustus Caesar otavius prós amicus…ami cus? adevia ser mação…

    Augustus quinque ou quincas…

  • FCosta

    Obrigado pela magnífica reflexão que tem a intyeressante particularidade (tantas vezes esquecida) de apontar caminhos alternativos.E penso que é isso que é fundamental hoje: criticar com elevação, refletir com independência e sugerir com paixão e sem temor.obrigado Rui Tavares.
    FCosta

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